quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Amor

Dias difíceis em que não me apetece falar, não me apetece elaborar, só ver séries e ler na cama e dormir cedo, nem adianta perguntar nada, é uma tempestade, Hugo, eu saio dela viva, não te preocupes, mas não me perguntes nada muito complicado nem exijas muito de mim por uns dias que isto vai lá.

Hoje de manhã, junto com as chaves do carro e a lancheira do Gabriel, um CD velho, velhíssimo, dos Secos e Molhados, que, como já devem ter reparado pelas vezes que posto vídeos do youtubes aqui, é a minha salvação, o meu panic buttom, a safe word, o sítio onde tudo se resolve. Achava que o CD já tinha ido para o lixo. Pego no CD. Nenhum bilhete, nenhum miminho, nada.

Não sei se foi de propósito, provavelmente não (se não estaria lá o tal bilhete), o que torna o que temos muito mais sagrado, muito além do visível, muito além do elaborável. Levei o CD para o carro, liguei o ar-condicionado e pus aquilo a bombar a sério, a bombar como os kizombeiros que às vezes passam por aqui. Ouvi as mesmas canções de sempre várias vezes seguidas, em loop. A sentir a cura enquanto berrava "o verme passeia na lua cheia", que canto ao Gabriel desde as seis semanas de gravidez e ele não liga nenhuma, mas que, caramba, tem um verdadeiro poder de Ave Maria, de mantra, de chacras a mudar em mim quanto mais alta se torna a voz do Ney. Que belíssima ideia, deixar ali o CD para falar comigo.

Tendo sido uma atitude consciente ou não, Amor é isto, e mais isto do LP Secos e Molhados, de dezembro de 1973, mês em que o meu marido veio ao mundo, e que lhe dedico de coração. :)

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A mãe

A menina escreveu uma história. “Mas quão melhor seria se você escrevesse um romance”, disse a mãe. A menina construiu uma casa de bonecas. “Mas quão melhor seria se fosse uma casa de verdade”, disse a mãe. A menina fez um travesseirinho para o pai. “Mas o quão mais útil seria uma colcha”, disse a mãe. A menina cavou um pequeno buraco no jardim. “Mas o quão melhor seria se você cavasse um buraco grande”, disse a mãe.
A menina cavou um buraco grande e entrou nele para dormir. “Mas quão melhor seria se você dormisse para sempre”, disse a mãe.
[Lydia Davis]


segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Primavera nos dentes



"Quem tem consciência pra se ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contramola que resiste
Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
Entre os dentes segura a primavera."

A arte de ter dias maus: não domino.

domingo, 21 de setembro de 2014

Toda crise é uma oportunidade? (ou o fim do verão)

Fora os dias maravilhosos no Alentejo, não deixou saudades. Agosto foi marcado pela correria dos exames à mama e acabou com a bênção do diagnóstico, sim, mas foi horrível. Houve coisas boas no meio da crise, claro, há sempre - toda crise é uma oportunidade, não é o que dizem? - e, mesmo obcecada e doida, gostei de sentir o carinho e a preocupação à minha volta. Pessoas que não souberam disto antes do resultado da biópsia: foi para vos proteger. Na verdade, não contei a ninguém por livre vontade, as pessoas é que iam aparecendo em momentos cruciais onde eu estava com a velha cara de cu. Vê-las preocupadas comigo foi lisonjeiro, como disse, mas também, às tantas, achei desnecessário. Claro, isto pode ser o culpossauro a falar, a Indigna de Carinho. E já divago. Sigamos.

Toda crise é uma oportunidade e também tive uns momentos assim neste agosto horroroso. Sinto-me mais calma e centrada, menos doida. Ter alucinado com a minha mãe pode ter ajudado (ora bem, eis o tipo de coisa que devia guardar para o journaling, mas que se lixe). Sinto-me melhor comigo mesma, cliché dos clichés. A minha mãe ajudou bastante, porque não apareceu como uma santa mãezinha a pegar-me ao colo, nada disso. Apareceu dura como sempre foi comigo. Mas não falou do que eu julguei que ela falar, não criticou o óbvio (e visível). Ela foi a minha mãe como eu a adorava, porque caramba, como eu a adorava. Dez anos depois e ainda me debato com problemas que ficaram por resolver, e critico-a enraivecida muitas vezes por ter deixado tantos buracos abertos. Mas adorava-a. Adorava-a, aquele sentido de humor porquito, o dom de ver as intenções das pessoas, o conhecimento de mundo. Adorava-a.  Tanto que foi com ela que eu alucinei, e não com nenhuma Nossa Senhora ou Fada Fófis. Lembrar-me disto no meio de tanto sentimento mal resolvido foi outra bênção, outro "benigno" que recebi.

Toda crise é uma oportunidade, certo? Não sei se todas,  mas esta também me deu a oportunidade de abrir caminho por um pântano de frustração e excesso de informação. Perdi e recuperei muitos quilos em pouco mais de dois anos, e vi que tinha tomado o processo por garantido. O processo não é garantido. Nenhuma relação - seja com o marido, filhos, com o próprio corpo ou própria alma - é garantida. Tudo exige esforço e amor, e uma boa dose de desconfiança quando tudo parece andar sobre carris e a tentação de olhar para o lado é grande. O meu corpo grita por atenção, e já está a tê-la. Merece tanta atenção - ou mais, porque tem sido tão negligenciado - quanto outras partes da minha vida. E não foi a minha mãe que me disse isso.

Enfim, cá vamos em frente, eu que achava que ia ter praia até outubro. Pelos vistos, São Pedro também não teve um verão por aí além e decidiu pôr-lhe cobro. Eu entendo, seu moço.
Eu entendo.




domingo, 14 de setembro de 2014

Um cemitério lisboeta

 Verde, muito verde, um silêncio absoluto, só quebrado pelas brincadeiras dos meninos da escola dominical lá longe. Sinais a proibirem flores de plástico e a sugerirem uma pequena doação em troca da visita. Uma elegância que contrasta em absoluto com os extravagantes - e enormes - cemitérios lisboetas construídos às pressas durante a epidemia de cólera no começo (ou meio?) do século XIX. Este é mais velho.Mais silencioso, com mortos bastante mais discretos. Mortos ingleses, portanto.

 O cemitério só está aberto das 10h às 13h. Vocês podem dizer que é por causa da falta de pessoal ou da anglo-antipatia (que, para mim, não passa de um mito). Mas eu cá tenho outra teoria.

 Os britânicos defuntos precisam da sua privacidade para apreciarem uma boa chávena de chá e sandes de pepino às cinco. Naturalmente.





Ele já adora estes passeios, algo que me aquece a alma. 




Uma das coisas pelas quais tenho pena de que os cemitérios estejam em vias de extinção: O filho de Emmanuel e Alice viveu apenas 15 minutos, mas existirá durante o tempo que leva uma pessoa a ler a lápide, e cada vez que isto acontece. Isto foi há quase 120 anos. O mais provável é não haver mais nada sobre ele em lado nenhum, nem nome recebeu. Muito provavelmente, a única prova de que existiu é esta, no cemitério inglês da Estrela. 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Moça bonita, olá, que saudades!

Lembras-te daquela nossa penúltima conversa no Muxaxo? Sobre o tempo e a escrita e tanta coisa boa que vinha sempre ao de cima. A Casaca disse-te que ia escrever-te, no sentido de pegar em ti e transformar-te em palavras, e tantas palavras que tu és, mulher! "Um livro para ti, e não sobre ti", que eras menina discreta e a Casaca sabia disso.

Amigos, venham todos prestigiar o nascimento deste livro lindo, que só podia ser lindo porque é assim que ela escreve, e mais lindo é porque é para alguém que ela amou. E é sobre várias outras coisas também, porque a Casaca é menina para mergulhar sem medo nos sentimentos e acontecimentos da vida. Não é uma viagem só ao fim do coração, é ao fundo de muito daquilo que nos constrói e destrói todos os dias.

Apareçam! Para quem não me conhece, serei a bolinha de batom bordeau a olhar embevecida para a sua amiga-irmã a falar nas mesinhas. Inconfundível.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Journaling

Para péssimas meditadoras como eu, tem sido um plano B fantástico.

Antes de fazer seja o que for, programo um timer para 15 minutos e escrevo sem parar, sobre o que me apetecer, tudo que me ocorre (ou até mesmo que nada me ocorre), sem qualquer preocupação estilística - muito menos moral - num sítio cuja inacessibilidade de outros esteja garantida. Não o fazia desde os 16, 17 anos e tem sido um verdadeiro bálsamo, um encontro de mim comigo mesma nesta era de hiperpartilha. É raro ler o que escrevi depois. Talvez um dia, nem que seja para me rir da falta de preocupação estilística ou moral.

Como tem sido bom para mim, recomendo para toda a gente, mas especialmente para maus meditadores. Se é para estar com pensamentos a zunir enquanto tentamos concentrar-nos na respiração, mais vale dar atenção aos pensamentos do que à respiração, não? Se calhar não, mas a verdade é que saio das minhas sessões (comecei há cerca de uma semana, um pouco mais) muitíssimo relaxada e pronta para o dia que se segue.