quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Mugunzá

Na casa da vovó Lourdinha, na Carlos Vasconcelos, ainda corríamos à porta ao sinal dos vendedores de rua: doce americano (uma mistelada colorida feita sabe lá deus do quê), chegadinha, quebra-queixo, o puxa da cana. Não eram só os doces que eram vendidos de porta em porta - ainda bebi muito leitinho vindo na carroça em leiteiras enormes - hoje, intriga-me como o leite não azedava no calor de Fortaleza.

(Uma vez, vovó meteu-se com o leiteiro: "encontrei uma piaba no leite, seu moço". "Não, dona Lourdinha, eu misturo o leite é com água da torneira, não é do rio não...")

Isto tudo para escrever sobre mugunzá, porque sonhei a noite com mugunzá. O cheiro invadia a rua de longe e lá íamos nós buscar uma caneca ou um copo à cozinha, um dos primos ficava na rua para parar o homem. O vendedor servia-nos de uma boa concha e estava sempre quentinho (mais uma vez: como? Os vendedores vinham em carroças de muito longe, e nem o leite azedava nem o mugunzá arrefecia) e era este o melhor lanche do mundo, um sabor que procuro em toda a minha vida de adulta e não encontro. Sinto-o agora: comida com substância, honesta, vinda da terra e dos bichos, nenhum ingrediente feito em fábrica. Não duvido que hoje em dia exista mugunzá instantâneo (mas prefiro nem pesquisar sobre o assunto).
Em Fortaleza, vinham em carroças, com cavalo e tudo. Não me lembro dos carrinhos assim.

Cinco da manhã, um brilho no olhar...

- Tenho bananas a estragar no frigorífico, e o raio da prateleira de cima, meu Deus, para que fui comprar uma merda tão alta, sou lá sueca, vou dizer para o Hugo meter lá as merdas dele, minis, e as bananas, se calhar congelo em rodelas, mas já tenho tantas congeladas em rodelas, porque é que compro sempre ou bananas a mais ou bananas de todo e depois todos reclamam que não há bananas, e o armário, temos mesmo de o tirar, ontem não escrevi a cena do dia, hoje tenho de escrever duas, não escapas, e vai ser quando te levantares e já tiveres decidido o que fazer às bananas, há também salada, não te esqueças de fazer salada hoje e já agora compra papel higiénico, já ligaste à Segurança Social? O Montepio, meu deus, tambem tenho de ir ao Montepio, faço isso tudo depois da escola, mas depois há a grelha para o dia e é grande, já são muitas coisas e não posso esquecer-me de ir mostrar os exames ao médico, será que o período demora a vir? Perder 200g por semana não é assim tão desastroso, se pensar bem, acabarão por ser 10 kg um dia, o que importa é confiar no processo e não te esqueças de te inscreveres na zumba amanhã, não podes fazer aulas de graça. E tens de escrever sobre mugunzá.

domingo, 26 de outubro de 2014

Não é um post bonitinho (não que algum seja)

A minha mãe teve óbito declarado às 00:13 do dia 26/10/2004, fuso horário de Fortaleza, Brasil.

Sei que nem toda a gente assinala aniversário de morte, mas eu assinalo, sim. Só ignorei o primeiro, porque ainda estava a ignorar a própria dor.

Nos anos seguintes, arranjei sempre uma forma singela de marcar o dia. Em 2007, 20 dias depois de casar, atirei o meu buquê ao mar para ela, sozinha, ali ao pé do Alcatruz. Só saí de perto quando as flores estavam completamente destruídas pela rebentação.

A cada aniversário de morte da minha mãe, despeço-me dela, digo que será o primeiro ano sem sofrimento. E nunca é. Este ano tinha em mente fazer milhentas coisas para a celebrar, mas já vi que não vai ser possível, porque já estou tristíssima, porque já estou revoltada, porque já tenho 28 anos outra vez e acabei de ficar órfã e terei de desmontar a casa em que vivemos as duas durante anos. Só as duas. E não sei ligar a máquina de lavar, tem truque. E passarei um mês a ligar-lhe para o telemóvel para comentar banalidades.

Tanta falta que ela me faz. Tantos anos a ignorar a falta que ela me fazia e, neste, logo neste, cai-me tudo em cima. Já disse várias vezes que as minhas saudades não são doces, não são bonitas. As minhas saudades são ácidas, corrosivas, mazinhas. Não há ternura, não há amor, não há gratidão, nem sequer há um vazio.

É uma ferida que está ali, aparentemente cicatrizada, juramos que está cicatrizada, mas que de vez em quando lá vem qualquer coisa e passa o algodão com álcool por cima. E vemos que não está cicatrizada coisíssima nenhuma, vemos que está fresca, em carne viva. Não tens mãe. Não tens a quem ligar sobre uns sapatos ou uma doença. Não tens.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

"Greatest love story in the world"


Notas soltas sobre mercúrio retrógrado

- Toni Morrison, a minha escritora preferida de todo o sempre, diz que ficou deprimida após a morte do pai, e que isso não foi uma coisa má; foi apenas um período de recolha, de para olhar para dentro e fechar-se em si, de não-atividade. Deprimir, para ela, acabava por ser necessário e natural.

- Os culpossauros, ao deprimirem, pensam: qual é o motivo EXATO para deprimir? Não tenho tudo? Uma família linda, saúde, dinheiro no banco? Pensa nas pessoas que não têm nada disso. Não há motivo para deprimir, vamos lá criar um plano de ataque altamente eficaz e pô-lo em execução amanhã mesmo, sem falhas. Claro que, por estarem deprimidos (versão Toni Morrison), não fazem nada disso no dia seguinte, adicionando mais uma camada de culpa ao caparro do espécime.

- Culpossauros extremamente eficazes têm pequenas boias de salvação: canções específicas, imagens da infância, imagens de filmes e livros (em que livro é que, uma vez por ano, se abria a casa e lavava-se tudo, baldes e baldes de água pelo chão a levar o pó todo para fora? A Casa dos Espíritos, será?), ou filmes inteiros. Coisas que os ajude a chegar à hora seguinte ainda com algum grau de eficácia.

- Aniversário da morte da mamãe? Crise genérica? Um ataque de solidão súbito, umas saudades sei lá bem de quê? Uma inquietação pelo que não sei ainda, ou como é que diz a canção? Disse ontem, ao meu irmão, pela primeira vez: acho que estou deprimida há algum tempo e não consigo aceitar isso. E ele: pede ajuda, partilha. Eu odeio ajuda e odeio partilhar negrume, a menos que seja completamente em público aqui  no blog (e com um certo grau de anonimato). Quanto maior a necessidade de recolha, maior a minha procura por exteriorizações, porque, né, tenho tudo para estar feliz.

- Isto não é um pedido de ajuda, isto já é a ajuda. :)

- Se tenho um amigo deprimido (versão Toni Morrison), corro a sacudi-lo do banzo, vamos sair, vamos beber, vamos distrair. E se o melhor for o contrário? Vai para casa, dorme mais cedo. Amanhã, quem sabe?

- Temos, todos, culpossauros e outras espécies, que aprender a conviver melhor com o mal estar. Fugimos do mal estar como o diabo da cruz, como se ele nos fosse matar. É disso que tento  lembra-me ao desenhar planos infalíveis para não deprimir: que tenho de aprender a sentir-me mal. Como não aprendo, adiciono mais uma camada de culpa ao caparro do espécime.