quarta-feira, 29 de março de 2017

Slut shaming no colégio católico

Tinha 11 anos e estava perdidamente apaixonada pelo R.. Não era coisa nova, estava apaixonada por ele desde que entrara para a minha turma no 3º ano. Mas, como disse anteriormente, eu era uma miúda esquisita, ele tornou-se imediatamente popular. Gravitávamos em dois mundos diferentes, eu no meu, ele no de toda a gente. Sigamos.

Nas festas juninas, dança-se a quadrilha e é uma festança. Durante a primária, era a professora que fazia os pares, portanto não havia problema, mas no quinto ano a coisa complicou-se. Era preciso que os rapazes convidassem as raparigas, o que me tirava de imediato do jogo. A A. recebeu vários convites, como sempre, a G. também. Tinham de decidir que convite aceitar. Eu não recebia nenhum.

Ia à missa todos os dias antes das aulas, e um dia, fiz uma promessa a Nossa Senhora para dançar com o R. Não era lá grande promessa, umas quantas ave-marias, só para ver se colava com a santa. Vá lá, Senhora, quebra o galho. Contei à minha melhor amiga T e a mais ninguém.

Um dia antes de começar os ensaios, o irmão do R. aborda-me. Quer saber se já tenho par para a quadrilha. Não, ainda não. Tu quer dançar com o R.?

Obrigada pela graça concedida, Minha Mãe do Céu.

O R., afinal, era incrivelmente tímido. Lá me entregou o convite sem dizer uma palavra e encontramo-nos no dia seguinte, no ensaio. Não conseguia olhá-lo nos olhos, nunca. Sentia uma felicidade absoluta, adiada durante anos. Lembro-me da primeira vez que nos tocámos: as mãos, em roda. Lembro-me da letra da canção.

Olha o fogo, 
olha o fogaréu
queimando as pontas da palha do meu chapéu...

Lembro-me de boa parte da coreografia.
Nunca, em anos e anos de colégio, tinha-me sentido tão feliz.

Um dia, saí do ginásio depois do ensaio, e, à porta, esperavam-me quase todos as raparigas da turma. Cercaram-me.

Tu é mesmo galinha ( = fácil, oferecida). Fazer uma promessa pra dançar com um menino? Que vergonha.

Que vergonha.
Que galinha.
Galinha.
Vergonha.

A T. contara o meu segredo.
Neguei tudo, neguei tudo. Mas para quê, a palavra já estava espalhada e era uma questão de tempo até chegar aos ouvidos do R.., mais um prego tão desnecessário no meu caixão social. Agora o R. ia saber que o único motivo pelo qual dançaria comigo era a intervenção divina.

E provavelmente tinha cometido um pecado tal que ia arder no inferno para sempre. Enfim, estava fodida assim na terra como no céu.

Mas, de alguma maneira, tinha valido a pena.

Não sei se ele chegou a saber ou não. Fui a mais dois ou três ensaios, mas não fui ao dia da festa, não me lembro o porquê. Não dancei a minha quadrilha, mas não me custou. Ficaram os ensaios. No ano seguinte, saí do colégio, vim viver para o estrangeiro. Não sei, até hoje, porque é que o R. me convidou em detrimento da P, da G, da C.

Talvez tenha sido mesmo Nossa Senhora, que engravidou adolescente e deve ter perdido muitas quadrilhas.

E ainda não paguei o diabo da promessa, caneco.

Esta memória tem vários ângulos dentro da minha cabeça. Acho até que já escrevi sobre ela aqui há uns anos, só a falar na paixão doida que eu sentia, no coração a bater. Mas houve o outro lado. Há sempre um outro lado.





terça-feira, 28 de março de 2017

Das procuras

O padrinho, ateu mais devoto que conheço, diz-me com alguma frequência: tu não acreditas em nada. Em nada. Estás mais próximo das minhas (não)crenças do que imaginas. 

E fico frustrada todas as vezes, porque ele está coberto de razão. Sei que somos poeira cósmica. "Seres vivos com consciência de si próprios", diz ele, e sei que tem razão. Porque, então, não me sinto confortável nisso? Porque é que sinto uma paz enorme quando comungo na missa, por exemplo, ou quando acendo as minhas velas a todos os meus guias, ou quando vejo coincidências? 

Noto, em mim, inquietações cada vez mais fortes. Uma necessidade de encontro de uma linguagem que dê algum sentido a isto tudo, mas tudo cai diante do menor pensamento lógico e vejo-me órfã outra vez.

É difícil chegar a Deus, caramba. George Harrison bem dizia. It takes so long.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Dos clichés que também somos, no fundo.


Vi uma palestra da Marta Gautier este fim de semana e gostei muito mais do que achava que ia gostar. Entre muitas coisas que ouvi por lá, uma mexeu comigo em especial: ela falava da sua experiência de ter sido uma criança muito calma e de estar sempre a ser incitada a mexer-se. Vai para o baloiço, filha, e lá ia ela, e fingia divertir-se quando tudo o que queria era estar parada a observar. Sorri e lembrei-me da minha dona Mel, envergonhadíssima num baile de carnaval infantil depois de ter costurado à mão uma máscara espetacular para mim apenas para me ver no chão a apanhar confetis.

 Nunca fui a filha que ela queria. Nunca. Demasiado emotiva, demasiado analítica, pouquíssimo vaidosa, esquisita, viajandona. Não era a filha duma pragmática como ela, e sim, filha de uma sonhadora. Mas era o que tínhamos, foi com isso que lidámos durante 50 anos. Sorri ali, no meio do auditório.

Até me cair o balde de água fria sobre a cabeça.

Puta que o pariu, estou a fazer a mesma merda ao meu filho. Estou a incitá-lo a quebrar limites o tempo todo, o meu menino amedrontado. A dizer a um menino que se porta bem que não devia portar-se tão bem. A exigir-lhe um ritmo que ele não tem. A empurrá-lo na direção contrária à essência dele. Tudo para que ele se encaixe numa tal "normalidade" que nem sei bem o que é. Que esteja numa média qualquer. E isso é apenas parvo.

Penso se não o farei por ter sido uma criança esquisita, que via coisas, inventava histórias e vivia muito dentro da própria cabeça. Sofri um bocado durante a primária. Mas ele parece bem. Caramba, ele está bem, não tenho de espelhar nele o que fui ou não fui. 

E pergunto-me se será esta a sina de todos os pais: tentar cumprir nos filhos o que não cumprimos no nosso tempo, assim com os nossos pais e avós não cumpriram antes de nós, e os nossos filhos continuarão com essas expectativas sobre os seus filhos, e os seus filhos nos filhos deles, desde o início dos tempos, como se fôssemos um só ser humano a nascer vezes sem conta, um ser humaninho que nunca corresponderá inteiramente ao que se espera dele, com uma forma que nunca será preenchida na sua totalidade porque ninguém lhe conhece os contornos. Como um campeonato que nunca será vencido porque ninguém lhe conhece as regras. A ver se é desta, a ver se é desta.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Pequenas histórias tristes*

O meu pai tem uma tragédia na sua vida. Nasceu no dia 2 de abril, tendo a minha avó morrido no dia seguinte - no dia do aniversário dela, o dia em que completaria 33 anos.

Há uns dias, o meu pai confessou-me que uma das suas maiores preocupações era que eu nascesse no dia 2 também. Nasci a 31 de março.

Não há hipótese de fazer com o que o meu pai aceite fazer anos. Muitas foram as vezes em que insisti fazermos a mesma festa e ele até acede ao pedido para me agradar, mas nota-se perfeitamente que nao está a comemorar nada. É uma data maldita. Nunca deixará de ser. Existem, sim, demónios invencíveis. O do meu pai é um deles.

A Little Life, um dos melhores livros que já li na vida, seguramente o melhor livro que li já adulta, é um bocado sobre isso - o falhanço do amor, mesmo o maior deles, o mais sincero, diante de alguns fantasmas. Lindo, cheio de sofrimento e alguma redenção - pouca. Foi um livro que me fez compreender grandes questões na minha vida e mudar outras. É uma grande, grande história. Se puderem, leiam.

*Porque para histórias alegres há o Facebook. Este blog, mesmo que passe um ano inteiro parado, é o que é, a casa das minhas sombras - com algumas abertas.

Curtíssima sobre tapioca por quem sabe dela.

Não, senhores.

Tapioca nao é fit.
Tapioca não é superalimento.
Tapioca não é, sob nenhuma, mas mesmo nenhuma circunstância, para ser servida com ovo mexido.

Tapioca é vida, tapioca é amor e infância e cheiro a lenha.
Há várias maneiras de comer tapioca. Falo das do meu Ceará.

Umas docinhas, muito tenras e finas, pequeninas, servidas numa folha. Deliciosas, já salivo só de me lembrar delas. Mamãe adorava.

Umas muito grossas, como um bolo, com muito coco em lascas, fresco, encharcadas também em leite de coco fresco, vendidas em tabuleiros no centro da cidade com um fio de leite condensado por cima.

A que se vende na praia, muito gordinhas e curtas, com uma fatia de queijo coalho lá dentro, mergulhadas em leite de coco (TAPIOCA TEM DE SER MERGULHADA EM LEITE DE COCO ANTES DE SERVIR), com manteiga por cima.

A das tapioqueiras da BR, as melhores, feitas à lenha, cheirosas, regadas com leite de coco, barradas com margarina, com um belo copo de café bem doce a acompanhar.

Respeitem a tapioca, ok? É uma bênção dos povos indígenas que deve ser honrada como tal.

Não lhe metam frango.
Não lhe metam nutella.
E pela hóstia consagrada, não lhe metam ovo mexido.

Aquilo nem sequer é nutritivo, caramba.

quinta-feira, 23 de março de 2017

Dar nomes aos bois

Há dias que ando exausta. Absolutamente exausta, a adormecer pelos cantos em horas impróprias. Sem dar atenção a ninguém, a reclamar da saúde. Fui ao médico, tenho um batalhão de exames por fazer. Convenci-me de que estava anémica ou algo pior.

Ontem foi a despedida do meu pai, que voltou hoje para Inglaterra. Passou cá quase sete meses, desta vez. Estava completamente integrado na nossa rotina. Eu sou contra este regresso desde que foi anunciado: porque ele está perto da reforma, porque já trabalhou demasiado na vida, porque tem problemas de saúde. Chateio-o. Mas nada o demoveu, está entediado, precisa de trabalho e em Portugal não há.

Ontem, à mesa, estávamos todos. E eu voltei a fazer cara feia. Ele não devia ir. Não devia. E continuo a acender velas para que apareça trabalho em Portugal. Todos olhavam para mim como se fosse maluca, até o meu filho. A Bel olhou-me nos olhos e disse: tadinha.

O voo era hoje de manhã, não sabia bem a hora. Houve acidente na A5, estava tudo parado de Cascais às Amoreiras, e liguei ao meu pai. Estava já dentro do avião.

Ah.

Desejei-lhe boa viagem e boa sorte.

E disse para mim mesma, pela primeira vez: estou muito, muito triste por o meu pai ir para longe de nós outra vez.

E comecei a sentir-me um pouco melhor fisicamente.

quarta-feira, 22 de março de 2017

O escorrega

Todos nós, por cá, trabalhamos muito. Chegamos estoirados à sexta.

Entro no centro de estudos e lá está ele, olhos pesados, já desanimado. Onde queres ir, filho? Escolhes tu.
Ao escorrega.

O escorrega é o do Aleggro de Alfragide, que não é mesmo nada perto da nossa casa, mas vamos, mesmo apanhando trânsito, mesmo tendo de jantar na pior praça de alimentação do país. Vamos porque é o happy hour dele, a caipirinha, o bota-fora da semana. Na última sexta, esteve 70 minutos a escorregar enquanto o observava no Starbucks. 70 minutos. Não o interrompi nunca. Estava nos seus próprios termos. Quisesse, teria passado outros 70. Sai de lá renovado, o meu menino de oito anos já tão cheio de coisas para fazer.

Quanto a mim, estou por encontrar o meu escorrega. Algo que me zere o peso dos dias. Nada o faz, nem o que fazia antes - nem os meus livros, nem os meus pensamentos. Às vezes penso que me entreguei à ansiedade e ao estar 100% do tempo ligada. É algo que me entristece muito.