sexta-feira, 3 de julho de 2009

Os anos do Metal

Os anos do Metal foram talvez aqueles em que o teu pai se sentiu mais feliz em toda a sua vida. Não pretendo com isto desfazer do teu nascimento nem das emoções que senti com ele, mas a verdade é que a felicidade, pelo menos para mim, sempre esteve inversamente proporcional à responsabilidade que uma pessoa possa assumir para si própria. Estou convicto que nada é melhor nesta vida do que não ter que pagar hipotecas a bancos estropiados, não trabalhar uma única hora ou poder ter a liberdade de evitar fazer compras Sábado de manhã num hipermercado apinhado de gente infeliz.
Seja como for, o conceito de responsabilidade como deves talvez imaginar, era coisa que não fazia parte do meu juízo quando tinha os meus 14 anos. As únicas coisas que realmente os meus pais me exigiam eram que passasse de ano e não rompesse as calças nos joelhos a jogar à bola. Hoje, aos 36 anos, este grau de exigência até me faz sorrir enternecido, mas na altura, confesso, tanto uma condição como outra eram bastante difíceis de cumprir.
Foi então que, no meio deste idílio vivencial, nos finais dos anos 80, que o teu pai começou a ouvir a música que todos os rapazes dos subúrbios ouviam na altura. Era o chamado Heavy Metal que simbolizava, para todos nós que o sentíamos, a afirmação duma certa individualidade não só perante os nossos pais mas, também e essencialmente, perante uma sociedade que se preparava para nos começar a cobrar comportamentos e condutas que não estávamos muito interessados em seguir.
Imbuído neste espírito contestatário, comecei a detestar todos os artistas que não se vestissem de preto, não tivessem cabelo cumprido ou cujo aspecto não fosse assim a dar para o ameaçador. O Heavy Metal era uma música feita por chungas para chungas e convenhamos, agora que passaram 20 anos, o teu pai não era propriamente um beto da linha de Cascais.

O primeiro grupo que comecei a gostar foi, claro, dos Iron Maiden. Todos os dias alguém levava um álbum deles para a escola e emprestava-o ao seu semelhante. O dono do disco era sempre um homem tido em grande conta e possuir um exemplar dos Iron Maiden era um símbolo de status nada negligenciável. Claro que em contrapartida o vinil andava a rondar pela turma toda e quando chegava às mãos do dono, presumo que não viesse nas melhores condições, mas isso, como os jornalistas gostam de chamar, era assunto tabu. Apesar de 1988 terem lançado o Seventh Son of a Seventh Son, um disco baseado num livro de Orson Scott Card sobre uma criança com poderes de vidência, era o mítico Somewere in Time, lançado em 86, que tinha mais êxito entre os putos. A explicação é simples. Além de ser um disco melhor, embora seja apenas a minha opinião baseada no meu gosto que tanto na altura como hoje não é de fiar, a capa dele era absolutamente fantástica. Nela via-se o Eddie (a mascote ameaçadora do grupo) de pistola de lazer na mão a passear pelas ruas de Londres num futuro longínquo. Era impossível aos 14 anos não se ficar vidrado naquele desenho e a desejar, não só, ter o disco, como também formar logo a seguir uma banda de Heavy Metal. Este foi o primeiro álbum que ouvi dos Iron Maiden e também deste estilo musical. Fiquei fascinado, claro, e aqueles solos da guitarra do Adrian Smith ou do Dave Murray mexiam comigo e, quanto mais alto os ouvia, mais louco ficava. Abanava a cabeça com força e tocava na guitarra imaginária imitando, na medida do possível, as posições do solo. Era um orgasmo performativo purificador para mim mas um motivo de preocupação para a minha mãe que passava os dias a trabalhar para me proporcionar algum futuro. Mantenho o sonho de ver um espectáculo deles ao vivo um dia destes. Os Iron Maiden para os machos com mais de 32 anos e suburbanos foram os Rolling Stones dos anos 70 e todos eles conseguem cantar de fio a pavio músicas intemporais como o Wasted Years ou o Stranger in a Stranger Land ou mesmo a reconhecer de imediato o solo melancólico inicial do Alexander the Great.

Mas nem só de Iron Maiden vivia o som pesado.
Mais rudes e sujos eram os grandes Manowar. Em 1988 lançaram o seu melhor disco de sempre, Kings of Metal. A grande potencialidade dos Manowar residia no ambiente gótico que conseguiam criar em todas as músicas. As suas canções estavam pejadas de reis que perseguiam o seu destino percorrendo o tortuoso caminho que os levava ao trono lado a lado com a morte, com as mulheres e a fiel espada cujo aço era normalmente lambido a sangue dos inimigos. Por outro lado havia uma analogia interessante entre o cavalo, o ferro das espadas e as Harley Davidson o que os tornava bastante populares entre os motoqueiros. Não era de estranhar que algumas músicas começassem com sons de batalhas, motores a acelarar e gemidos femininos de prazer. Um dos pormenores interessantes do grupo era que todos os elementos rapavam os pêlos do peito o que lhes dava um ar asseadinho nas fotografias que normalmente víamos nas páginas dedicadas ao rock pesado da revista alemã Bravo. Como vês, razões de interesse eram o que não faltavam a estes senhores que se vestiam de cabedal. Em relação à indumentária que se usava entre os metaleiros o teu pai, por muita pena dele, nunca seguiu a tendência. É que os teus avós não me deixavam usar ganga apertada, pulseiras de caveiras, botas ténis e muito menos o cabelo cumprido. No entanto, e é muito importante frisar isto porque ainda hoje tenho orgulho nisso, o teu pai era o único puto a usar uma cruz de Cristo invertida feita com crachás de bandas de heavy metal. Claro que só formava a peça após sair de casa para não ser repreendido, mas recebia muitos olhares de aprovação dos meus semelhantes e isso fez crescer sobre a minha pessoa uma aura de mistério que muito me agradava. Repara que, tal como agora, o teu pai teve sempre um aspecto jovem e naquela idade tinha um físico dum garoto de 11 anos. Olhar para mim com aquela crucifixo invertido ao peito deveria ser um espectáculo algo macabro para os transeuntes. Mas enfim, a necessidade de afirmação tinha de ser preenchida de alguma forma.

De entre todos os artistas da pesada que apareceram, destacaram-se os Metallica. Talvez sejam aqueles que ainda preservam a fama embora, infelizmente para os fãs da velha guarda, pelas piores razões. Mas a honra de terem feito o melhor disco de Heavy Metal de todos os tempos ninguém a pode tirar. Chama-se …and justice for all e é um portento eléctrico. Foi graças a ele que o teu pai começou a ter a panca de escrever a palavra MetallicA em todos os cadernos e em todas as mesas em que se sentava na escola. Era lindo e reconfortante prolongar a perna do “M” e a do “A” como na capa dos discos. Devo-te dizer que graças a este disco comecei a ter uma sensibilidade musical mais apurada que me permitiu, aliás, descobrir novas sonoridades e novos projectos fora do circuito mainstream das rádios da moda. …and justice for all é uma orquestração esplendorosa onde todos os instrumentos se encaixam como uma sinfonia. O disco em questão é ouvido amiúde no meu MP3 e digo-te que é dos poucos que me faz bater o pé e abanar a cabeça nos transportes públicos e um dos melhores discos que ouvi em toda a minha vida.
Apesar de tudo havia uma certa incongruência na minha existência de então que tenho de confessar aqui publicamente. É que apesar de venerar os Iron Maiden, os Manowar ou os Metallica, ouvia às escondidas os Wham e todas as semanas via o Top Gun que foi o filme que, de longe, mais vi até hoje. Qualquer dia tenho de te escrever também sobre estes dois marcos da minha história.




1 comentário:

pekala disse...

Muito bom!Acabaste de relatar toda a minha adolescência:)vi manowar em cascais,idolatrei iron maiden(wasted years é a MINHA música e continuo a venerar Metallica mais pelo passado que pelo presente!(mas éramos todos um bocadito bimbos lol)aquelas cruzes invertidas...mygod!adorei o post!