domingo, 26 de julho de 2015

Leve o mundo que eu vou já

Lembro-me da minha mãe a ouvir esta canção às gargalhadas, achava a letra engraçadíssima. Fazia pause para me repetir os versos preferidos, e eu não achava piada, achava simplesmente bom, a tríade Marisa Monte/Nando Reis/Carlinhos Brown não faz nada menos de excelente, pelo menos para os meus ouvidos, pelo menos até hoje. Ela adorava o disco todo, que não é este Acústico, é outro simplesmente ao vivo que não encontro em lado nenhum - mas esta canção era especial. Eu estava no Porto quando a Cássia Eller morreu, e a minha mãe telefonou-me em lágrimas. Era fã a sério.

 Não sei a que propósito ECT apareceu na minha cabeça hoje depois de tantos anos,  mas, para quem tem a memória infectada pelos últimos dias da doença dela, inomináveis, indescritíveis, é sempre um diamante, um brinde inestimável lembrar-me das pequenas coisas, do cantarolar despreocupado, da risada. "Ele estava em casa com a vitamina pronta, Melissa..." e ria-se, ria-se.

Hoje achei a canção hilariante também.


Gosto muito mais da versão que ela ouvia, umas guitarradas fabulosas. Vou ver se encontro no Spotify.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Fome

Jantámos no mercado do Bom Sucesso todas as noites, porque 1. era ao lado do hotel, 2. gostamos de mercados o que gera o 3., somos uns pirosos e bimbos. E um fim de tarde estávamos lá a bebericar mojitos quando somos abordados por uma tipa desesperada, ofegante, a pedir dois euros, por favor, dois euros é o que me falta para comer. Dei-lhe um, e ela ficou impaciente, porque precisava de dois, dois, e não um, impacientei-me e ela foi à mesa seguinte, onde um grupo alegre fazia a sua happy hour.

Enquanto lá tentava sacar dinheiro ao grupo que se ria às gargalhadas, a mulher a jurar de pés juntos que era para comida e não para a droga, eu muito indignada a dizer ao Hugo que as pessoas se apressam muito a julgar as outras, estão lá eles na pele daquela pobre diaba para saber o que custa não ter a dose de que precisa, o que é que eles têm a ver com o que ela vai fazer com o dinheiro, ou dão ou não dão, agora estarem ali a rir-se da/com a mulher, isso é que não podia ser, agora humilharem uma pessoa por causa das suas dependências, obrigando-a a mentir, será que não lhe podem deixar um pouco de dignidade?, e por aí fui em diante, com o meu filho muito perplexo a perguntar se a mulher tinha fome e eu a dizer, muito cheia de mim, que sim, filho, tinha fome mas não era de comida, tanto falei do topo da minha enorme empatia social que não reparei que a mulher já estava de volta do interior, com o seu prato de risotto muito bem decorado e uma bela duma fanta a acompanhar, sob os aplausos fortes da mesa dos happy-hourers e não só, a repetir em alto e bom som para quem quisesse ouvir, eu não disse? Eu não disse?

E eu ali, de queixo caído, enquanto ela se senta na mesa à frente da minha e sorri-me, faz-me o gesto do polegar, agradece. Eu, desconcertada, faço que sim, o que é que me resta fazer, né.

A senhora tinha fome de comida mesmo, mãe, de arrozinho.

domingo, 19 de julho de 2015

Também por isto

Consigo passar 20 minutos num crescendo de empolgação a falar como eles eram incríveis e tinham cerca de quatro partes diferentes numa só canção, tudo tão brilhante e bom e sem medo de ser feliz, e não têm só dois álbuns bons, para mim têm mesmo todos, não te lembras de Innuendo? Música enorme, não a oiço há 20 anos. 

Ele está habituado aos meus rabujos monotemáticos de uma hora, vai dizendo que sim, pontua, não conversa, não discorda, não dá corda, deixa-me falar e falar à vontade.

E depois mais tarde estamos em casa, depois de um dia intenso de calor, a aquecer o jantar e a chamá-lo 50 vezes até ouvir um já vou, tão longe de tudo que é épico e brilhante, e de repente o motivo do já vou, meteu-me Innuendo no Spotify, e sim, cliché dos clichés, ergui o pulso fechado no ar com a boca cheia de esparguete, yeah, we'll keep on trying.


quinta-feira, 16 de julho de 2015

Os rios

Estava eu à espera do cruzeirinho turístico a contorcer-me de nojo da água turva cheia de peixões enormes e radioativos, ali no cais pejado de turistada também enojada ao olhar para o rio, quando ouvimos tchibum, e mais tchibum, e eles são morenos, muito morenos do sol, assim como o meu filho, têm tronco nu e são magros, alheios ao passeio dos turistas bimbos, porque estes, senhores, estes rapazes estão a banhos. Saltam elegantemente para dentro de água, poses perfeitas, desde os mais pequeninos aos mais velhos, sendo todos jovens, jovens e sozinhos, e pobres. Capitães da Areia, e eu ali a pensar, qual é a história aqui, quem são, qual é a história.

Qual é a história aqui.

Não conhecia o Porto e não é por três dias que ia passar a conhecer, mas a história está com certeza algures nas casas que sobem a colina, velhas, decrépitas, como as das colinas que bem sabemos de Lisboa, e os rapazes são os mesmos, morenos e pobres. Só que os nossos cresceram divorciados do seu rio, enquanto aqueles cresceram no seu seio. E é bonito de se ver, os magotes de meninos espalhados ao longo das margens a chamar o Douro de seu enquanto nós, bimbos, gordos, brancos,  bebericamos vinho de dentro de barcos turísticos, não sem não invejar um pouquinho os seus mergulhos naquela tarde de 36 graus, aquele abandono, aquela confiança na água escura que os engole e os devolve, os engole e os devolve, todas as vezes.