Praticamente não fomos ao cinema - em claro detrimento do teatro, este ano foi assim. O Hugo conseguiu eleger Gone Girl como o seu filme do ano, eu fico-me pelo maravilhoso Oro di Napoli que vimos apresentado pelo maravilhoso Wes Anderson. Estou cada vez mais chata com filmes, é preciso que tragam qualquer coisa de novo e quase nenhum traz. Sim, agora meto aquela frase que ninguém ousa dizer com medo de parecer nariz empinado: praticamente já só vejo europeus.
Melhor livro é O Pintassilgo, de longe. O Hugo está com os livros como eu estou com os filmes e abstém-se.
Melhor peça de teatro foi Bovary, embora Fausta me tenha mantido hipnotizada por quase duas horas no texto (adoraria conhecer a autora!), disse-me tanto, aquilo. Fomos ao teatro em média duas vezes por mês (Cartão Maria & Luiz, gente! Melhor do que o do Continente) e muito poderia falar aqui sobre a maioria delas, mas retenham-se nas duas ali de cima, caso haja reposições).
O concerto do ano, para o Hugo, foi Jay Jay Johanssen no Mexefest, e eu entendo perfeitamente: o homem estava alegre em palco, muito, mas mesmo muito alegre. A Casa do Alentejo é uma sala muito bonita. Aliás, não volto a perder um Mexefest, não pela música, mas porque as salas são do mais bem escolhido que já vi na vida. O Hugo ouve, eu percorro os cantos a fotografar.
Mas, para mim, o concerto do ano foi Sam Smith no Alive. Que surpresa extraordinária. O vinho branco fresquinho em quantidades generosas pode ter ajudado qualquer coisinha, mas não muito, não tudo.
Melhor série: há unanimidade: The Knick, especialmente a explosão que é o ep. 7.
Melhor cemitério: o dos Ingleses, na Estrela, para o Hugo. O meu continua a ser o dos Prazeres, será para sempre.
Melhor com o Gabriel: acho que ele está entre A Montanha e o ciclo Mais Novos do São Luiz, do qual só apanhei o do Noiserv e foi tão, mas tão bom! Espero que haja mais Mais Novos em 2015.
E pronto, foi este o ano na rubrica Consumo. Que 2015 traga mais e melhor! (Especialmente nos filmes).
terça-feira, 30 de dezembro de 2014
Inspiração
Se o que nos consome fosse apenas fome
Cantaria o pão
Como o que sugere a fome
Para quem come
Como o que sugere a fala
Para quem cala
Como que sugere a tinta
Para quem pinta
Como que sugere a cama
Para quem ama
Palavra quando acesa
Não queima em vão
Deixa uma beleza posta em seu carvão
E se não lhe atinge como uma espada
Peço não me condene oh minha amada
Pois as palavras foram pra ti amada
Pra ti amada
Oh! pra ti amada
domingo, 28 de dezembro de 2014
Sou dessas, graças a Deus
Janeiro é excitante com o seu sem-número de possibilidades. Limpa-se tudo, somos tabula rasa, escolhamos as peças que queremos que nos componha. Façamos pesquisas na net, compremos caderninhos novos, tentemos novos métodos, novas abordagens. Queimemos os últimos cartuchos do nosso former self entre o 26 e o 31, aquelas coisas que detestamos e que nos confundem. Janeiro é balde de água com sabão, rodo, pano de chão. Nada é impossível para janeiro, o mês das causas impossíveis, o mês com superpoderes.
E em setembro há outra hipótese.
E em setembro há outra hipótese.
O declutter que não me é natural - e é mais do que urgente*
Tempo nas redes sociais.
Comida má.
Merdas que não dependem de mim.
*Chamemos-lhe "resoluções para janeiro".
E mais isto, roubado do perfil do FB da C:
Comida má.
Merdas que não dependem de mim.
*Chamemos-lhe "resoluções para janeiro".
E mais isto, roubado do perfil do FB da C:
" If I give myself a few moments of stillness and emptiness before I must make a choice or a decision, I will find wisdom. If I do the same before I contemplate a rose, eat a meal, hear a concert, listen to a friend, my perceptions will be clearer and richer.
Stillness and emptiness prepare and weave the context for wisdom, for meaning, for goodness, for aliveness, for creativity. They form the manger of my soul.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
Self surrender 2014*
O mundo não gira em torno do meu umbigo e eu não tenho o Anel que rules them all;
*Adoro roubar termos de livros.
que esta noção torne o meu 2015 mais leve de culpas.
*Adoro roubar termos de livros.
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
Uma birra curtíssima
Foda-se, porque diabo não posso estar depressiva no Natal? Estou perfeitamente funcional o ano inteiro, a true provider de amor, comida, calor, dinheiro, tempo. Funciono muito bem dentro das minhas limitações todos os dias do ano, menos no Natal.
Para o ano, o meu desejo de Natal é ser deixada em paz. Não exijam rigorosamente nada de mim entre o dia 23 e 25. Podem exigir antes, que adoro ver as luzes e comer fritos. Mas quando bate aquela solidão sem fim nem meio, aquela sensação de que nada vale a pena e de que não há amor neste mundo que me compense por tudo que se vai perdendo pelo caminho, quero ser deixada em paz.
Talvez um abracinho, vá.
Para o ano, o meu desejo de Natal é ser deixada em paz. Não exijam rigorosamente nada de mim entre o dia 23 e 25. Podem exigir antes, que adoro ver as luzes e comer fritos. Mas quando bate aquela solidão sem fim nem meio, aquela sensação de que nada vale a pena e de que não há amor neste mundo que me compense por tudo que se vai perdendo pelo caminho, quero ser deixada em paz.
Talvez um abracinho, vá.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
O que queres de Natal, Melissa?
Criar calo, meu senhor! Criar um calo bem rijo nas partes que ainda estão moles e já não deviam estar.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2014
Dezembro
"Stress puro. Temos de aprender a acalmar e relativizar."
Foi com este SMS que a Casaca respondeu a uma série de queixumes meus. A minha saúde anda uma merda, num mês fui parar três vezes às urgências, em duas delas tive de voltar para um upgrade de drogas porque o tratamento inicialmente receitado não tinha sido suficiente. E isso deixa-me péssima, porque eu não sou assim - sou uma gaja de alergias, não de maleitas.
Acontece no Natal. Normal, não é? É no fim do ano que fazemos contas à vida, e, no caso dos culpossauros, o saldo raramente é satisfatório. E o ano nem sequer foi mau, muitíssimo pelo contrário: profissionalmente foi o melhor de sempre. Tive uma viagem fantástica a Paris e outra ao Alentejo que me deixaram felicíssima. Não discuti com ninguém. Não houve crises. Não perdi amigos. Fora estes piripaques de fim de época, estivemos todos sempre saudáveis. Ouvi a melhor coisa que uma pessoa pode ouvir na sua vida (acham que é "eu amo-te"? Não, senhores. É "é benigno".) Foi um ano muito bom.
Mas dezembro é cansaço, cobranças, tristezas muitas. Vêm-me umas teimosas saudades da minha mãe. Uma nostalgia brutal de coisas que nunca cheguei a ter. Enfim, em dezembro chove merda, e mais triste é a chuva de merda este ano com um filho apaixonado por presépios e histórias do Novo Testamento (esta parte está bem coberta; ter estudado boa parte da vida com padres deixou um bom legado de conhecimentos de mitologia cristã, Deus seja louvado).
Mas chove merda, e estou dorida, magoada. E li o SMS da Casaca no carro, e caramba, estava sol lá fora e o carro parecia um ovo quentinho, e eu pensei, foda-se, queria que fosse MESMO um ovo. Queria encolher-me numa bola à espera de janeiro ou de fevereiro ou sei lá de quando. E está tão quentinho aqui dentro e está a tocar uma canção linda, vou ficar. Vou ficar.
Agora finalizava com um "e ficou tudo bem...", mas não, só ficou bem durante cinco ou seis minutos.
Foi com este SMS que a Casaca respondeu a uma série de queixumes meus. A minha saúde anda uma merda, num mês fui parar três vezes às urgências, em duas delas tive de voltar para um upgrade de drogas porque o tratamento inicialmente receitado não tinha sido suficiente. E isso deixa-me péssima, porque eu não sou assim - sou uma gaja de alergias, não de maleitas.
Acontece no Natal. Normal, não é? É no fim do ano que fazemos contas à vida, e, no caso dos culpossauros, o saldo raramente é satisfatório. E o ano nem sequer foi mau, muitíssimo pelo contrário: profissionalmente foi o melhor de sempre. Tive uma viagem fantástica a Paris e outra ao Alentejo que me deixaram felicíssima. Não discuti com ninguém. Não houve crises. Não perdi amigos. Fora estes piripaques de fim de época, estivemos todos sempre saudáveis. Ouvi a melhor coisa que uma pessoa pode ouvir na sua vida (acham que é "eu amo-te"? Não, senhores. É "é benigno".) Foi um ano muito bom.
Mas dezembro é cansaço, cobranças, tristezas muitas. Vêm-me umas teimosas saudades da minha mãe. Uma nostalgia brutal de coisas que nunca cheguei a ter. Enfim, em dezembro chove merda, e mais triste é a chuva de merda este ano com um filho apaixonado por presépios e histórias do Novo Testamento (esta parte está bem coberta; ter estudado boa parte da vida com padres deixou um bom legado de conhecimentos de mitologia cristã, Deus seja louvado).
Mas chove merda, e estou dorida, magoada. E li o SMS da Casaca no carro, e caramba, estava sol lá fora e o carro parecia um ovo quentinho, e eu pensei, foda-se, queria que fosse MESMO um ovo. Queria encolher-me numa bola à espera de janeiro ou de fevereiro ou sei lá de quando. E está tão quentinho aqui dentro e está a tocar uma canção linda, vou ficar. Vou ficar.
Agora finalizava com um "e ficou tudo bem...", mas não, só ficou bem durante cinco ou seis minutos.
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
Relaxar
E no dia de Natal parto para o Alentejo com os meus, para passar quatro dias nas lezírias, a contemplar o nada, em meditação, a recarregar a alma, perder a noção do tempo.
Quem é que estou a enganar? Como já disse antes, eu não relaxo no vazio; em repouso, a minha cabeça aborrece-se, e não descansa. O meu repouso é a beleza, é o movimento, é a ideia nova, é o novo ângulo, aquele pormenor que nunca tinha visto nem considerado. O meu descanso é justamente o estímulo, o meu silêncio é o barulho selecionado. Ontem a minha ave preferida falava em coisas que a descentram e que exigem empenho, e senti que não tinha isso. Hoje acordei a sentir o contrário - eu tenho sim, o meu zen - só é um pouco diferente do zen como ele é habitualmente percebido.
E vou sim, para o Alentejo, só não para o meio do mato. Vou para onde haja muitos cemitérios, igrejas e túmulos para escarafunchar.
Quem é que estou a enganar? Como já disse antes, eu não relaxo no vazio; em repouso, a minha cabeça aborrece-se, e não descansa. O meu repouso é a beleza, é o movimento, é a ideia nova, é o novo ângulo, aquele pormenor que nunca tinha visto nem considerado. O meu descanso é justamente o estímulo, o meu silêncio é o barulho selecionado. Ontem a minha ave preferida falava em coisas que a descentram e que exigem empenho, e senti que não tinha isso. Hoje acordei a sentir o contrário - eu tenho sim, o meu zen - só é um pouco diferente do zen como ele é habitualmente percebido.
E vou sim, para o Alentejo, só não para o meio do mato. Vou para onde haja muitos cemitérios, igrejas e túmulos para escarafunchar.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
Disse-me um sábio durante uma crise de insegurança:
A insegurança, a sensação de ser uma fraude e o medo de fazer errado são vivências exclusivas das pessoas competentes.
Os incompetentes são imbecis dotados de certezas absolutas que se acham perfeitos e insubstituíveis. Talvez sofram menos, mas eu não gostaria de ser um deles. Prefiro sofrer mais. Vá em frente e acredite no seu trabalho.
Os incompetentes são imbecis dotados de certezas absolutas que se acham perfeitos e insubstituíveis. Talvez sofram menos, mas eu não gostaria de ser um deles. Prefiro sofrer mais. Vá em frente e acredite no seu trabalho.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
Do Facebook da Ju, hoje
Um ano de saudade profunda e absoluta.
O QUE EU APRENDI COM A CECÍLIA
Aprendi que o ser humano é bom, que amor ao próximo existe e que as pessoas ajudam pelo simples fato de ajudar. E num momento de fraqueza e desespero, se sentir amado renova forças e nos ajuda olhar pra frente e continuar lutando.
Que a vida é pra ser vivida! Apesar das derrotas, apesar das tristezas, apesar das doenças, ela é um presente e temos que aproveitá-la.
Que podemos sempre ver a situação pelo lado bom, por mais cruel que se mostre a realidade. Um dia, Cecília já bem judiada pela doença e pelo tratamento, com a pele vermelhe e sensível, se olhou no espelho, sorriu e disse: É bom que eu nem preciso de blush, né, mãe?! Minha bochecha já está vermelhinha.
Que a amizade é uma dádiva divina. Que podemos ter amigos eternos, verdadeiros, prontos pra demonstrar a profundidade de sua amizade. E que ela pode nascer, linda, alicerçada em momentos de provação.
Que as vezes precisamos levar um tapa da vida para nos tornarmos pessoas melhores. Rever valores, conceitos, necessidades e aprender que o melhor da vida é a simplicidade e não precisamos mais que isso para sermos realmente felizes.
Escrevo esse texto porque dentre tantos ensinamentos que minha Joaninha deixou, alguns foram fundamentais para explicar sua breve passagem por esse mundo material e consolar meu coração sangrante de mãe.
Que a vida te sorria em vários tons de lilás todos os dias, minha amiga.
segunda-feira, 8 de dezembro de 2014
Coisas bonitas que não me saem da cabeça (graças a Deus)
"Montezuma"
So now I am older than my mother and father
when they had their daughter
now what does that say about me
Oh how could I dream of such a selfless and true love
could I wash my hands of
just looking out for me
Oh man what I used to be
Oh man oh my oh me
Oh man what I used to be
Oh man oh my oh me
In dearth or in excess
both the slave and the empress
will return to the dirt I guess, naked as when they came
I wonder if I'll see any faces above me
or just cracks in the ceiling
nobody else to blame
Oh man what I used to be
Oh man oh my oh me
Oh man that I used to be
Oh man oh my oh me
Gold teeth and gold jewelry
every piece of your dowry
throw them into the tomb with me
bury them with my name
Unless I have someday
Ran my wandering mind away
Oh man what I used to be
Montezuma to Tripoli
Oh man oh my oh me
when they had their daughter
now what does that say about me
Oh how could I dream of such a selfless and true love
could I wash my hands of
just looking out for me
Oh man what I used to be
Oh man oh my oh me
Oh man what I used to be
Oh man oh my oh me
In dearth or in excess
both the slave and the empress
will return to the dirt I guess, naked as when they came
I wonder if I'll see any faces above me
or just cracks in the ceiling
nobody else to blame
Oh man what I used to be
Oh man oh my oh me
Oh man that I used to be
Oh man oh my oh me
Gold teeth and gold jewelry
every piece of your dowry
throw them into the tomb with me
bury them with my name
Unless I have someday
Ran my wandering mind away
Oh man what I used to be
Montezuma to Tripoli
Oh man oh my oh me
sábado, 6 de dezembro de 2014
Das noites perfeitas
No Campo das Cebolas, com o Gabriel a correr à nossa frente, disse-me o Hugo: não há nada que eu goste mais do que passear em Lisboa contigo. Sorri. Não há nada que eu goste mais do que passear em Paris com ele, seguido de em Roma com ele, seguido de em Praga com ele. Mas Lisboa enche-me as medidas também. E andar devagarinho à noite, a olhar para dentro dos restaurantes fashion e bares, ver os pormenores das portas das igrejas sem pressa, os artistas de rua (cada vez há mais, benzadeus), os navios, os tuk tuks... Sabe a novidade, e eu relaxo na novidade, no barulho (assunto para outro post).
Estavam nove graus mas não os sentíamos, por algum motivo. Fomos ver a árvore do Terreiro do Paço, que deslumbrou o Gabriel. Bebi ginginha, que o Hugo acha brega a menos que seja no Rossio. Fomos ver o estúdio do Toca a Todos, demos dinheiro à Cáritas. Vimos o ensaio do Boss AC. Percorremos as paralelas da Rua Augusta para o Gabriel escolher as melhores luzes (Escolheu as da rua Garrett, super xoxas), apanhámos o atalho do metro para irmos jantar comida dos deuses e surtar com a conta no fim. Fomos à Bertrand Chiado porque é inevitável passar por aquela maravilha às dez da noite e não entrar. Saímos de lá com dois livros para o Gabriel e uma BD para mim, coisa obscura nacional que já me rendeu duas boas ideias para o filme.
Ir andando devagar, apanhar o concerto do Boss AC - é sexta-feira, yeah! -, castanhas para o meu filho de barriga rota. Fotografar os pormenores da Nossa Senhora da Conceição enquanto o Gabriel bebe água sentadinho num degrau. Adormeceu antes de o carro chegar ao Cais do Sodré. Perdemo-nos. Chegámos a casa tarde, muito tarde, já com muito frio, já a espirrar.
Estavam nove graus mas não os sentíamos, por algum motivo. Fomos ver a árvore do Terreiro do Paço, que deslumbrou o Gabriel. Bebi ginginha, que o Hugo acha brega a menos que seja no Rossio. Fomos ver o estúdio do Toca a Todos, demos dinheiro à Cáritas. Vimos o ensaio do Boss AC. Percorremos as paralelas da Rua Augusta para o Gabriel escolher as melhores luzes (Escolheu as da rua Garrett, super xoxas), apanhámos o atalho do metro para irmos jantar comida dos deuses e surtar com a conta no fim. Fomos à Bertrand Chiado porque é inevitável passar por aquela maravilha às dez da noite e não entrar. Saímos de lá com dois livros para o Gabriel e uma BD para mim, coisa obscura nacional que já me rendeu duas boas ideias para o filme.
Ir andando devagar, apanhar o concerto do Boss AC - é sexta-feira, yeah! -, castanhas para o meu filho de barriga rota. Fotografar os pormenores da Nossa Senhora da Conceição enquanto o Gabriel bebe água sentadinho num degrau. Adormeceu antes de o carro chegar ao Cais do Sodré. Perdemo-nos. Chegámos a casa tarde, muito tarde, já com muito frio, já a espirrar.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
Duetos e a ranzinza do sofá
Não sou daquelas pessoas que resmungam das coisas novas, "comerciais", que hoje tudo é mau e feito às pressas. Pelo contrário, sinto-me jovem, gosto das tendências, das novidades, das reciclagens e essas coisas todas. Mas ontem apanhei-me num momento rezingão, ao ouvir o meu dueto preferido da época, que está ali por baixo. Não conhecia a letra, então fui ler: caramba, tão sóbria, contida, económica. E explosiva de amor ao mesmo tempo. Adulta, madura. Raio da música é velhíssima, tem 70 anos.
Então fui ouvir o meu dueto preferido sem ser da época, fofo todos os dias:
E fiquei irritada. Caramba, já não há músicas sóbrias, adultas e incrivelmente românticas, ou sou eu que ando a procurar nos sítios errados? Há uns anos, li uma crítica ao maravilhoso O sítio das coisas selvagens (filme, não livro), em que o crítico também padecia da mesma irritação com a música/cinema ditos independentes: mas será que agora temos todos de permanecer numa eterna adolescência, a sermos fofinhos, a encarar os nossos trauminhas de infância e a sermos mais fofinhos ainda na nossa fragilidade? Já não podemos dar uma de Hemingway e meter tudo para dentro e sermos machos, de vez em quando?
Não me entendam mal: acho uma lufada de ar fresco o podermos ser jovens e imaturos e coloridos e fofos, mas já é uma lufada a dar para o longuinha. Ao ler a letra do Frank Loesser (seja quem for) senti a permissão de ser adulta, sem macacadas nem fofices. Uma lufada de ar gelado que apreciei bastante.
Fui reclamar dessas coisas todas ao Hugo, que estava deitado no sofá. Pus as pernas dele em cima das minhas e pus-me a falar e a falar. Ele não concordou com nada. Deve ser porque curte Nick Cave.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
I don't "like" things, I obcess
Igreja de São Luís dos Franceses: não só nunca tinha lá estado como nunca tinha dado por ela, mini mini, super discreta e ainda francesa after all these years. Fomos ver um coro africano, lindo, e decidimos ficar para ver o concerto a seguir simplesmente porque estávamos na primeira fila e seria muito difícil passar pelo monte de gente até chegar à porta. Não conhecíamos a cantora, mas sem problemas, porque estava quentinho, estávamos sentados. E que bom que ficámos, que bom golpe de sorte tivemos em ter lá ficado. A música era mágica, fantasmagórica. A cantora, misteriosa e linda. Houve uma canção em que fechei os olhos e vi o Oscarizável a desenrolar-se à minha frente. O Hugo deu-me uma cotovelada, julgou que eu tivesse adormecido.
Mas não é pela Johanna Glaza que fiquei obcecada, não senhores. Ora bem, se repararem, não descrevi minimamente a igreja de São Luís dos Franceses, além de dizer que era pequena. Isso porque não reparei mesmo nos pormenores. E não reparei nos pormenores porque, diabo, sentei-me em frente a isto.
Mas não é pela Johanna Glaza que fiquei obcecada, não senhores. Ora bem, se repararem, não descrevi minimamente a igreja de São Luís dos Franceses, além de dizer que era pequena. Isso porque não reparei mesmo nos pormenores. E não reparei nos pormenores porque, diabo, sentei-me em frente a isto.
Ora bem, primeiro li, fiz umas contas de cabeça. Casou aos 18, morreu aos 31. Tudo bem. O viúvo encomendou a placa informativa (na falta de termo melhor: de certeza que existe).
Cinco minutos depois, ainda durante o coro africano, já me perguntava de que teria morrido a Condessa de Chambors. Porra, 31 anos é novo até para a altura. A placa não fala de filhos. Cotovelada do Hugo, ouve a música.
Dez minutos depois, já procurava o túmulo da Condessa debaixo do meu banco, pois os bancos ficam por cima dos túmulos. Nada, são ilegíveis.
Quinze minutos depois, googlava discretamente o nome gigantesco da condessa. Nenhum resultado, vou voltar a tentar agora.
No fim de tudo, já andava à procura no placard da igreja com quem é que podia falar sobre a Condessa. Também não encontrei. Desespero por um dia de folga durante a semana para ir falar com o padre ou algum sacristão ou o que valha. Preciso de saber de que morreu a Condessa, tão nova.
Preciso, a sério.
Update quase imediato: encontrei isto, mas ainda não sei de que morreu a senhora.
domingo, 30 de novembro de 2014
Angústias do guião
Graças a um excelente sistema de accountability, que é basicamente ter designado uma accountability partner que enche o meu saco e faz shaming no Facebook (OBRIGADA!), finalmente o meu Oscarizável já conta com 27 páginas de guião, quase meia hora de filme caso um dia alguém queira produzi-lo (sou uma mulher de fé, claro). Não sou ingénua para pensar que está no ponto, nem de longe - só quero uma base para começar a reescrita quando o meu atual projeto profissonal acabar (e partindo do princípio que não serei imediatamente sugada para o buraco negro de outro).
No entanto, mesmo sendo uma coisa em bruto, claro que as preocupações aparecem. Caramba, estou na página 27 e ainda me faltam uns bons cinco minutos para acabar o primeiro ato. Não sei se a história já está explicada, e o ideal é que estivesse nos primeiros dez minutos - e não está, nos dez primeiros minutos não está de certezinha. E será que está claro que a personagem Y e a Z partilham um segredo? Não, não está. E o que X veio fazer ao voltar para a terra natal? Sim, isso está. Enfim, milhares de perguntinhas que eu devia deixar para a reescrita, porque simplesmente não me deixam andar com a história para a frente. Tento lembrar-me do que dizia o Filipe dos filmes de terror, que não obedecem às mesmas regras, jogam noutro campeonato. Também me consola pensar no livrinho giro todos os dias que ando a ler, em que já vou a 2/3 e nada mais acontece do que o conflito a adensar-se - mesmo assim consegue ser muito cativante. Ou seja, talvez eu devesse apenas concentrar-me em contar a história da melhor maneira possível.
Eu prometi que não questionaria nada desta vez, iria escrever e escrever até ao fade out. Não é bem assim, não consigo pendurar o sentido crítico assim tão facilmente. Mas bom, para quem já desistiu umas cinco ou seis vezes de andar com o projeto para a frente porque precisava de "pesquisa histórica" antes, porque nunca seria capaz de "escrever com o linguajar do século XIX" e outras procrastinações medrosas, até que está a correr bem. Uma cena por dia, com atrasos pelo meio, mas está a correr bem.
Meia hora, gente!
Só volto a falar dele com a foto da capa impressa, lá para fevereiro (se a minha accountability partner ler isto, vem cá corrigir para janeiro).
(Giro, giro foi ter encontrado uma amiga querida ontem que também está a escrever um longa, por acaso está no mesmo ponto em que estou e praticamente acabávamos as frases angustiadas uma da outra. Senti-me menos sozinha no mundo. :))
No entanto, mesmo sendo uma coisa em bruto, claro que as preocupações aparecem. Caramba, estou na página 27 e ainda me faltam uns bons cinco minutos para acabar o primeiro ato. Não sei se a história já está explicada, e o ideal é que estivesse nos primeiros dez minutos - e não está, nos dez primeiros minutos não está de certezinha. E será que está claro que a personagem Y e a Z partilham um segredo? Não, não está. E o que X veio fazer ao voltar para a terra natal? Sim, isso está. Enfim, milhares de perguntinhas que eu devia deixar para a reescrita, porque simplesmente não me deixam andar com a história para a frente. Tento lembrar-me do que dizia o Filipe dos filmes de terror, que não obedecem às mesmas regras, jogam noutro campeonato. Também me consola pensar no livrinho giro todos os dias que ando a ler, em que já vou a 2/3 e nada mais acontece do que o conflito a adensar-se - mesmo assim consegue ser muito cativante. Ou seja, talvez eu devesse apenas concentrar-me em contar a história da melhor maneira possível.
Eu prometi que não questionaria nada desta vez, iria escrever e escrever até ao fade out. Não é bem assim, não consigo pendurar o sentido crítico assim tão facilmente. Mas bom, para quem já desistiu umas cinco ou seis vezes de andar com o projeto para a frente porque precisava de "pesquisa histórica" antes, porque nunca seria capaz de "escrever com o linguajar do século XIX" e outras procrastinações medrosas, até que está a correr bem. Uma cena por dia, com atrasos pelo meio, mas está a correr bem.
Meia hora, gente!
Só volto a falar dele com a foto da capa impressa, lá para fevereiro (se a minha accountability partner ler isto, vem cá corrigir para janeiro).
(Giro, giro foi ter encontrado uma amiga querida ontem que também está a escrever um longa, por acaso está no mesmo ponto em que estou e praticamente acabávamos as frases angustiadas uma da outra. Senti-me menos sozinha no mundo. :))
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
Como todas as canções de Natal deviam ser e nenhuma é
Ontem, na zumba, fizeram-nos saltar ao som de Jingle Bells. Que diabo, man? Ainda é novembro.
quarta-feira, 26 de novembro de 2014
O peru
O meu pai adora contar uma particularidade dos perus: se cercarmos um peru com grãos de milho, ele fica lá dentro e não faz mais nada, morre de inanição. Mas se tirarmos um grãozinho, ele lá começa a bicar os outros, libertando-se do círculo maldito e sem fim. Papai acha esta merda fascinante.
Muitas vezes na minha vida, sinto-me como o peru dentro do círculo de milho. Milhões de merdinhas minúsculas e sufocantes que me deixam sem ação, à espera de morrer seca no centro dos meus problemas insolúveis, a dar voltas e voltas e a embriagar-me com a perfeição do círculo formado para me f...., quando bastava que um grãozinho saísse do sítio. Um só, para me mostrar que as merdices minúsculas podem ter um fim. Assim, sentir-me-ia capaz de ir comendo os outros, um a um.
Por favor, grãozinho pioneiro, manifeste-se e quebre a roda. Estou a morrer.
Ainda sobre o meu pai, há cerca de dez minutos:
- Estou com um milhão de micro-cagalhões a chatearem-me, pai.
- Escolha dois, filha.
Muitas vezes na minha vida, sinto-me como o peru dentro do círculo de milho. Milhões de merdinhas minúsculas e sufocantes que me deixam sem ação, à espera de morrer seca no centro dos meus problemas insolúveis, a dar voltas e voltas e a embriagar-me com a perfeição do círculo formado para me f...., quando bastava que um grãozinho saísse do sítio. Um só, para me mostrar que as merdices minúsculas podem ter um fim. Assim, sentir-me-ia capaz de ir comendo os outros, um a um.
Por favor, grãozinho pioneiro, manifeste-se e quebre a roda. Estou a morrer.
Ainda sobre o meu pai, há cerca de dez minutos:
- Estou com um milhão de micro-cagalhões a chatearem-me, pai.
- Escolha dois, filha.
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
Ainda sobre o apego sem medo e totalmente relacionado ao post anterior
Ele vai buscá-lo à escola quase todos os dias, leva-o à capoeira, ao parque, têm longas conversas. O pequenino está apaixonado, a redescobrir um avô sem pressas, sem eventos estonteantes todos os dias, amor do bom, sem pensar no dia de amanhã, como se tivessem todo o tempo do mundo. Em fevereiro vai doer neles. Em mim, já dói agora.
Work in progress, em bom estrangeiro.
Work in progress, em bom estrangeiro.
sábado, 22 de novembro de 2014
Abordagem blog
Ontem o padrinho falava na longevidade deste blog, como não era parecido com nada no resto da minha vida, em que largava tudo pelo caminho. Isto espoletou uma converseta sobre os motivos pelos quais continuava a escrevê-lo, este oásis de continuidade e não-desistência. Consegui reunir algumas características da abordagem-blog.
- A maior: não tem um fim à vista, não é um projeto, não tem um objetivo, não tem sequer uma finalidade: faz parte dos meus dias. É algo natural como, vá, limpar o rabo na casa de banho. Não me angustio com a necessidade de ter de limpar o rabo provavelmente mais centenas de milhares de vezes na vida. É algo que vou fazendo. No dia em que este blog gerar um átomo de cobrança na minha cabeça, vai para o céu dos Projetos que Nunca Chegaram a Ser.
- Não penso no blog a não ser enquanto estou a escrever no blog ou a ler o blog. Mesmo assim, o amor pelo blog é grande. O blog é um dos meus maiores tesouros sem exigir que me consuma por ele.
Bom, falámos disso e muito mais, mas, por causa de outra conversa que tive com outras pessoas ontem à noite - sobre a dificuldade de dormir do Gabriel em bebé -, acabei por analisar também a abordagem-sono do bebé (e várias outras coisas da minha vida, mas esta foi a mais desastrosa).
- Tinha sempre um fim à vista: será aos três meses, aos quatro, aos seis, dá para acelerar o processo, faz isto, faz aquilo... E eu a ficar cada vez mais obcecada, porque não, senhores pais e futuros pais, não controlamos este processo. Eles vão dormir noites completas quando dormirem, por razões as quais não temos acesso. Aceitar o que não se pode mudar é o caminho.
- A privação de sono invadiu de tal forma a nossa vida que julgo que perdemos uma parte da fofice dos primeiros meses; hoje, quando nos lembramos do primeiro ano do Gabriel, lembramo-nos do sono. E isso é triste e injusto, porque ele era lindo, nunca chorava, nunca tinha uma cólica, nunca vazou uma fralda, nunca chorou na creche. Foi o bebé menos trabalhoso que já vi, excetuando, claro, o objeto da minha obsessão: eu queria dormir. O tempo todo. Na altura, papai disse-nos: vocês estão a olhar para isto com os olhos errados.
E estávamos. Eu estava. E olho para muitas coisas na minha vida da mesma forma - como um processo intragável com um fim a atingir. Sacrifício, sacrifício. Sendo que está mais do que provado que, na minha vida, sacrifício não traz recompensa nenhuma, traz desistência e frustração. Não sou abnegada. O que está nas minhas mãos mudar um pouco, portanto, é a abordagem à situação. Dito isto, quero alargar a abordagem-blog a outras situações da minha vida, sendo que a mais urgente é o trabalho, que tem sido extremamente violento.
Tenho sido injusta, em parte, com o meu trabalho. Porque se por um lado há factores que realmente não controlo - e aí é fazer corpo mole como quando se cai dumas escadas ou se é apanhado por uma onda forte -, há motivos pelos quais o escolhi e que têm de voltar a ser desfrutados: a alegria da reação certa na altura certa, aquela frase espirituosa, aqueles a-ha que ocorrem de vez em quando. Eu sou paga para escrever histórias e esqueço-me disto. Podia ser paga para coisas com muito menos piada. E o mais importante: não tem fim à vista. Se tiver sorte, um projeto seguir-se-á ao outro e haverá sempre dores de cabeça. Se continuar a concentrar-me nelas, duro mais três anos nisto.
Portanto, guardadas as devidas proporções e diferenças, abordagem-blog ao trabalho é o que se pretende já. Imediatamente.
Depois, quem sabe, consigo alargá-la a outras coisas na minha vida, olha a alegria que seria.
- A maior: não tem um fim à vista, não é um projeto, não tem um objetivo, não tem sequer uma finalidade: faz parte dos meus dias. É algo natural como, vá, limpar o rabo na casa de banho. Não me angustio com a necessidade de ter de limpar o rabo provavelmente mais centenas de milhares de vezes na vida. É algo que vou fazendo. No dia em que este blog gerar um átomo de cobrança na minha cabeça, vai para o céu dos Projetos que Nunca Chegaram a Ser.
- Não penso no blog a não ser enquanto estou a escrever no blog ou a ler o blog. Mesmo assim, o amor pelo blog é grande. O blog é um dos meus maiores tesouros sem exigir que me consuma por ele.
Bom, falámos disso e muito mais, mas, por causa de outra conversa que tive com outras pessoas ontem à noite - sobre a dificuldade de dormir do Gabriel em bebé -, acabei por analisar também a abordagem-sono do bebé (e várias outras coisas da minha vida, mas esta foi a mais desastrosa).
- Tinha sempre um fim à vista: será aos três meses, aos quatro, aos seis, dá para acelerar o processo, faz isto, faz aquilo... E eu a ficar cada vez mais obcecada, porque não, senhores pais e futuros pais, não controlamos este processo. Eles vão dormir noites completas quando dormirem, por razões as quais não temos acesso. Aceitar o que não se pode mudar é o caminho.
- A privação de sono invadiu de tal forma a nossa vida que julgo que perdemos uma parte da fofice dos primeiros meses; hoje, quando nos lembramos do primeiro ano do Gabriel, lembramo-nos do sono. E isso é triste e injusto, porque ele era lindo, nunca chorava, nunca tinha uma cólica, nunca vazou uma fralda, nunca chorou na creche. Foi o bebé menos trabalhoso que já vi, excetuando, claro, o objeto da minha obsessão: eu queria dormir. O tempo todo. Na altura, papai disse-nos: vocês estão a olhar para isto com os olhos errados.
E estávamos. Eu estava. E olho para muitas coisas na minha vida da mesma forma - como um processo intragável com um fim a atingir. Sacrifício, sacrifício. Sendo que está mais do que provado que, na minha vida, sacrifício não traz recompensa nenhuma, traz desistência e frustração. Não sou abnegada. O que está nas minhas mãos mudar um pouco, portanto, é a abordagem à situação. Dito isto, quero alargar a abordagem-blog a outras situações da minha vida, sendo que a mais urgente é o trabalho, que tem sido extremamente violento.
Tenho sido injusta, em parte, com o meu trabalho. Porque se por um lado há factores que realmente não controlo - e aí é fazer corpo mole como quando se cai dumas escadas ou se é apanhado por uma onda forte -, há motivos pelos quais o escolhi e que têm de voltar a ser desfrutados: a alegria da reação certa na altura certa, aquela frase espirituosa, aqueles a-ha que ocorrem de vez em quando. Eu sou paga para escrever histórias e esqueço-me disto. Podia ser paga para coisas com muito menos piada. E o mais importante: não tem fim à vista. Se tiver sorte, um projeto seguir-se-á ao outro e haverá sempre dores de cabeça. Se continuar a concentrar-me nelas, duro mais três anos nisto.
Portanto, guardadas as devidas proporções e diferenças, abordagem-blog ao trabalho é o que se pretende já. Imediatamente.
Depois, quem sabe, consigo alargá-la a outras coisas na minha vida, olha a alegria que seria.
domingo, 16 de novembro de 2014
Aprendi com a Rita
A morte da minha mãe foi um evento fraturante na minha vida. "Ah", dizem vocês, "como não seria?". Sim, claro, como não seria, mas a verdade é que, pelo menos durante um bom tempo, perdi tudo que tinha, tudo que sabia. Não me preparei para a morte dela como outros familiares de doentes oncológicos se preparam, tive exatamente dois dias e meio para o fazer - cá em casa, enganámo-nos até ao fim, ela inclusive.
Tinha amigos e namorado, pai e irmão, mas ela era o meu norte. Perdi a noção de quem eu era, do meu propósito. Mas, seguindo os seus valores, segui em frente a sorrir para todos, está tudo bem, está tudo bem, está tudo bem, deem-me mas é trabalho que isso é o que importa, mais trabalho, por favor, mais trabalho.
Tão fraturada que estava que não fui capaz sequer de encarar a morte dela de frente, com medo de perder ainda mais qualquer coisa . E este medo de perda acabou por se tornar uma constante na minha vida: em face dela, retiro-me emocionalmente das situações. Qualquer situação, com qualquer pessoa. Fico fria, o cérebro entra em modo de sobrevivência - não voltarás a fraturar.
A Rita (a nossa Silvina) escreveu, num post que não encontro para linkar, que achava ridículo a distância que os médicos interpunham entre si próprios e os pacientes, com medo de "se envolverem", quando é este envolvimento que nos torna humanos. Não cheguei a falar com ela sobre isso, mas caramba, isto fez cair uma ficha das grandes cá dentro. Que não há que temer a perda, há que aproveitar o ganho. A presença, o presente, o afeto do momento que se tem em mãos. Não posso viver a vida a pensar no que me será tirado mais cedo ou mais tarde. Não é justo para ninguém. E a primeira vez que pensei que isso podia ser um disparate em vez de inteligência e coolness foi com ela. E a primeira vez que o exercitei, também. Permiti-me amá-la naturalmente, sem medos, naqueles últimos dias em que a tivemos e chorá-la condignamente quando tudo acabou.
Não posso dizer que perdi o medo de voltar a fraturar-me, mas acho que cada dia aproveito mais um bocadinho as delícias que o apego traz. Posso amar as coisas, posso perdê-las. Tudo bem, é a dinâmica de que a vida é feita. Perdas e ganhos. Lição bonita da moça bonita que nunca cheguei a agradecer. (Se me lês aí do sítio fixe onde estás, miúda gira, pega o meu abraço tão grato).
Não é uma aprendizagem linear, o apego. O meu pai chegou de Moçambique há uns dias depois de meses fora, e a primeira coisa que o meu cérebro sobrevivente pensou foi: não te habitues a isso, porque é temporário. Enfim, lá chegarei.
Tinha amigos e namorado, pai e irmão, mas ela era o meu norte. Perdi a noção de quem eu era, do meu propósito. Mas, seguindo os seus valores, segui em frente a sorrir para todos, está tudo bem, está tudo bem, está tudo bem, deem-me mas é trabalho que isso é o que importa, mais trabalho, por favor, mais trabalho.
Tão fraturada que estava que não fui capaz sequer de encarar a morte dela de frente, com medo de perder ainda mais qualquer coisa . E este medo de perda acabou por se tornar uma constante na minha vida: em face dela, retiro-me emocionalmente das situações. Qualquer situação, com qualquer pessoa. Fico fria, o cérebro entra em modo de sobrevivência - não voltarás a fraturar.
A Rita (a nossa Silvina) escreveu, num post que não encontro para linkar, que achava ridículo a distância que os médicos interpunham entre si próprios e os pacientes, com medo de "se envolverem", quando é este envolvimento que nos torna humanos. Não cheguei a falar com ela sobre isso, mas caramba, isto fez cair uma ficha das grandes cá dentro. Que não há que temer a perda, há que aproveitar o ganho. A presença, o presente, o afeto do momento que se tem em mãos. Não posso viver a vida a pensar no que me será tirado mais cedo ou mais tarde. Não é justo para ninguém. E a primeira vez que pensei que isso podia ser um disparate em vez de inteligência e coolness foi com ela. E a primeira vez que o exercitei, também. Permiti-me amá-la naturalmente, sem medos, naqueles últimos dias em que a tivemos e chorá-la condignamente quando tudo acabou.
Não posso dizer que perdi o medo de voltar a fraturar-me, mas acho que cada dia aproveito mais um bocadinho as delícias que o apego traz. Posso amar as coisas, posso perdê-las. Tudo bem, é a dinâmica de que a vida é feita. Perdas e ganhos. Lição bonita da moça bonita que nunca cheguei a agradecer. (Se me lês aí do sítio fixe onde estás, miúda gira, pega o meu abraço tão grato).
Não é uma aprendizagem linear, o apego. O meu pai chegou de Moçambique há uns dias depois de meses fora, e a primeira coisa que o meu cérebro sobrevivente pensou foi: não te habitues a isso, porque é temporário. Enfim, lá chegarei.
terça-feira, 11 de novembro de 2014
Gente com esforço e sem esforço
Um problema que atribuo ao meu caráter de culpossauro é o obrigar-me a gostar de toda a gente. Inicio relações com toda a gente e, muitas vezes, pouco tempo depois, vejo que 1) não temos absolutamente nada em comum ou que 2) me aproximei de uma pessoa que não me faz bem por um motivo ou outro. Acontece-me mesmo muitas vezes, provavelmente porque 1) analiso e observo muito ou 2) sou muito ciente do meu território e sinto-me abusada mais depressa do que a maioria das pessoas. Também existe um 3), atraio muitos malucos (ou sou inicialmente atraída por eles) e quando me apercebo que são malucos, é demasiado tarde, porque culpossauros não saem de relações de cujo início têm a culpa.
O que tenho feito nessas alturas são listas mentais de gente boa que também atraio e que adoro naturalmente, gente com quem não passo tanto tempo quanto gostaria (ou tempo nenhum) e que têm doçura, graça e bondade em quantidades generosas: a S., com quem discuto assuntos macabros só para chegar à conclusão de que doentes são os outros, nunca nós. A M., que no dia do lançamento do livro da minha Casaca me levou um livro lindo com uma dedicatória mais linda ainda, com uma fita de ráfia. A P., sempre com palavras de incentivo para tudo e mais alguma coisa, criativa como ela só. E há outras, isso sem falar no núcleo duro, na minha mão cheia de amigas chegadas. Gente que me conquistou naturalmente e que adoro naturalmente, de quem não duvido, a quem não sou empurrada a ler nas entrelinhas. O culpossauro precisa dessas pessoas para ir dormir um bocado.
O que tenho feito nessas alturas são listas mentais de gente boa que também atraio e que adoro naturalmente, gente com quem não passo tanto tempo quanto gostaria (ou tempo nenhum) e que têm doçura, graça e bondade em quantidades generosas: a S., com quem discuto assuntos macabros só para chegar à conclusão de que doentes são os outros, nunca nós. A M., que no dia do lançamento do livro da minha Casaca me levou um livro lindo com uma dedicatória mais linda ainda, com uma fita de ráfia. A P., sempre com palavras de incentivo para tudo e mais alguma coisa, criativa como ela só. E há outras, isso sem falar no núcleo duro, na minha mão cheia de amigas chegadas. Gente que me conquistou naturalmente e que adoro naturalmente, de quem não duvido, a quem não sou empurrada a ler nas entrelinhas. O culpossauro precisa dessas pessoas para ir dormir um bocado.
segunda-feira, 10 de novembro de 2014
Cromos
A sala entupida de jovens hipsters do primeiro ano do curso de cinema, eu constrangidíssima, porra, onde é que me vim meter, o Hugo só dizia: caga. Não consegui cagar, sou demasiado self conscious para cagar nessas coisas, mas tudo bem, queria vê-lo e ouvi-lo, porque o adoro francamente. Mas por algum motivo achava que só eu e mais uns quantos tinham direito a adorá-lo, nunca miúdas de 21 com roupa da Outra Face da Lua e três riscos de eyeliner. Mas tudo bem, adiante.
O filme é maravilhoso. Não menos que maravilhoso. Tão incrível (e tão Wes!) que até encomendei uma cópia na Amazon, pois faltavam dois trechos na versão que o Paulo Branco miraculosamente encontrou para exibir (é a única cópia em filme que existe). Mas também não vou falar sobre o filme, vejam-no, é uma explosão de vida, de movimento, de entradas e saídas, uma Sofia Loren a quem até eu fazia um filho, um filme incrivelmente colorido sendo a preto e branco. Do ano que em mamãe nasceu. Mas adiante, que o post não é nem sobre o Wes nem sobre o Ouro de Nápoles.
Na fila da frente, a destoar das 350 groupies mal vestidas e de mim e do Hugo (e do Willem Dafoe, já agora, que estava em modo furtivo no meio da sala), um miúdo de cerca de 12 anos e o seu pai, um careca de uns 40. Pensámos: o pai queria ver um clássico italiano raro e arrastou a pobre criança, que calvário, esperemos que tenha trazido um tablet ou algo assim. Lá vimos a apresentação, o filme, até aí nada de tablet nem de bufanços pré-adolescentes... E aí acabou o filme e começou a conversa com o público. E o miúdo iluminou-se. Seguia o microfone com os olhos, ouvia as perguntas, o pai sussurrava-lhe traduções ao ouvido, o miúdo ria-se das piadas. E aí entendi: não foi o pai cinéfilo que arrastou o miúdo. Foi o miúdo cinéfilo que levou o pai a ver o seu ídolo. Que bom, que quentinho.
Não escolhemos os cromos que calham aos nossos filhos. Podemos, quando muito, estimular áreas X ou Y que consideramos importantes. No caso aqui de casa, nem isso fazemos, limitamos a levar a cria para todo o lado, sem objetivo nenhum - e ele vai escolhendo para si as peças que mais aprecia, com total liberdade. Não gosta muito de teatro, por exemplo. Aguenta bem a maioria das exposições que vamos, e muitas vezes já o vimos parar diante de algumas peças. Já ouvimos perguntas e inquietações. Nunca o forçamos em direção nenhuma nem fazemos coisas com objetivos "educativos". Deixamo-lo construir-se e explorar à vontade.
Mas caramba, como eu adoraria poder escolher o cromo da cinefilia para o Gabriel.
O filme é maravilhoso. Não menos que maravilhoso. Tão incrível (e tão Wes!) que até encomendei uma cópia na Amazon, pois faltavam dois trechos na versão que o Paulo Branco miraculosamente encontrou para exibir (é a única cópia em filme que existe). Mas também não vou falar sobre o filme, vejam-no, é uma explosão de vida, de movimento, de entradas e saídas, uma Sofia Loren a quem até eu fazia um filho, um filme incrivelmente colorido sendo a preto e branco. Do ano que em mamãe nasceu. Mas adiante, que o post não é nem sobre o Wes nem sobre o Ouro de Nápoles.
Na fila da frente, a destoar das 350 groupies mal vestidas e de mim e do Hugo (e do Willem Dafoe, já agora, que estava em modo furtivo no meio da sala), um miúdo de cerca de 12 anos e o seu pai, um careca de uns 40. Pensámos: o pai queria ver um clássico italiano raro e arrastou a pobre criança, que calvário, esperemos que tenha trazido um tablet ou algo assim. Lá vimos a apresentação, o filme, até aí nada de tablet nem de bufanços pré-adolescentes... E aí acabou o filme e começou a conversa com o público. E o miúdo iluminou-se. Seguia o microfone com os olhos, ouvia as perguntas, o pai sussurrava-lhe traduções ao ouvido, o miúdo ria-se das piadas. E aí entendi: não foi o pai cinéfilo que arrastou o miúdo. Foi o miúdo cinéfilo que levou o pai a ver o seu ídolo. Que bom, que quentinho.
Não escolhemos os cromos que calham aos nossos filhos. Podemos, quando muito, estimular áreas X ou Y que consideramos importantes. No caso aqui de casa, nem isso fazemos, limitamos a levar a cria para todo o lado, sem objetivo nenhum - e ele vai escolhendo para si as peças que mais aprecia, com total liberdade. Não gosta muito de teatro, por exemplo. Aguenta bem a maioria das exposições que vamos, e muitas vezes já o vimos parar diante de algumas peças. Já ouvimos perguntas e inquietações. Nunca o forçamos em direção nenhuma nem fazemos coisas com objetivos "educativos". Deixamo-lo construir-se e explorar à vontade.
Mas caramba, como eu adoraria poder escolher o cromo da cinefilia para o Gabriel.
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
A descompensada
... E ontem, a caminho de Lisboa, ia a contar ao Hugo o tal capítulo do livro que me fez parar para o digerir. Fui contando a história desde o princípio e, quando chegou à parte X, caí num pranto inconsolável. "Mas entendes como é lindo? Aconteceu o que tinha de acontecer, da maneira mais linda, mais digna, mais... buááááááá!!!!"
Ele caiu na gargalhada.
Eu corei até aos ossos.
Ele caiu na gargalhada.
Eu corei até aos ossos.
domingo, 2 de novembro de 2014
A beleza que faz parar
Acordei às sete e meia e comecei a lê-lo, sendo que às 10h30 já ia a meio, de tão gostosa e simples que a história é (e fininho, o livro). Mas eis que chega a um capítulo tão bombástico e lindo que caramba, isto merece uma pausa para respirar e deixar assentar, merece o marcador que o meu filho fez para mim, cheio de fios com contas e bonecos rechonchudos. Isto merece pensamento.
A passagem é tão linda, tão linda, tão linda, que considerem uma prova de amor eu não pôr o último parágrafo aqui, porque a tradução deve estar aí a chegar (é um pequeno-grande hype nos EUA) e vocês merecem a mesma pausa (porque sei que vão sentir o mesmo).
A passagem é tão linda, tão linda, tão linda, que considerem uma prova de amor eu não pôr o último parágrafo aqui, porque a tradução deve estar aí a chegar (é um pequeno-grande hype nos EUA) e vocês merecem a mesma pausa (porque sei que vão sentir o mesmo).
sábado, 1 de novembro de 2014
Um tipo de Natal
O Hugo conduz o carrinho branco comigo no banco do passageiro, exausta, exausta como em poucas vezes na minha vida. Na autoestrada, passamos por cima do cemitério, um pontilhado de luzes vermelhas a assinalar o dia de limpar as campas, tirar o mato, lavar a laje, polir a lápide. Um pontilhado de luzes vermelhas a dizer que alguém ali foi amado, alguém ali não foi esquecido. Olá, Melissa, esta luzinha aqui sou eu. Eu.
Achei tão bonito que sim, dei a volta e voltei a passar pelo mesmo sítio, pagando portagem a mais.
Achei tão bonito que sim, dei a volta e voltei a passar pelo mesmo sítio, pagando portagem a mais.
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
Mugunzá
Na casa da vovó Lourdinha, na Carlos Vasconcelos, ainda corríamos à porta ao sinal dos vendedores de rua: doce americano (uma mistelada colorida feita sabe lá deus do quê), chegadinha, quebra-queixo, o puxa da cana. Não eram só os doces que eram vendidos de porta em porta - ainda bebi muito leitinho vindo na carroça em leiteiras enormes - hoje, intriga-me como o leite não azedava no calor de Fortaleza.
(Uma vez, vovó meteu-se com o leiteiro: "encontrei uma piaba no leite, seu moço". "Não, dona Lourdinha, eu misturo o leite é com água da torneira, não é do rio não...")
Isto tudo para escrever sobre mugunzá, porque sonhei a noite com mugunzá. O cheiro invadia a rua de longe e lá íamos nós buscar uma caneca ou um copo à cozinha, um dos primos ficava na rua para parar o homem. O vendedor servia-nos de uma boa concha e estava sempre quentinho (mais uma vez: como? Os vendedores vinham em carroças de muito longe, e nem o leite azedava nem o mugunzá arrefecia) e era este o melhor lanche do mundo, um sabor que procuro em toda a minha vida de adulta e não encontro. Sinto-o agora: comida com substância, honesta, vinda da terra e dos bichos, nenhum ingrediente feito em fábrica. Não duvido que hoje em dia exista mugunzá instantâneo (mas prefiro nem pesquisar sobre o assunto).
(Uma vez, vovó meteu-se com o leiteiro: "encontrei uma piaba no leite, seu moço". "Não, dona Lourdinha, eu misturo o leite é com água da torneira, não é do rio não...")
Isto tudo para escrever sobre mugunzá, porque sonhei a noite com mugunzá. O cheiro invadia a rua de longe e lá íamos nós buscar uma caneca ou um copo à cozinha, um dos primos ficava na rua para parar o homem. O vendedor servia-nos de uma boa concha e estava sempre quentinho (mais uma vez: como? Os vendedores vinham em carroças de muito longe, e nem o leite azedava nem o mugunzá arrefecia) e era este o melhor lanche do mundo, um sabor que procuro em toda a minha vida de adulta e não encontro. Sinto-o agora: comida com substância, honesta, vinda da terra e dos bichos, nenhum ingrediente feito em fábrica. Não duvido que hoje em dia exista mugunzá instantâneo (mas prefiro nem pesquisar sobre o assunto).
Em Fortaleza, vinham em carroças, com cavalo e tudo. Não me lembro dos carrinhos assim. |
Cinco da manhã, um brilho no olhar...
- Tenho bananas a estragar no frigorífico, e o raio da prateleira de cima, meu Deus, para que fui comprar uma merda tão alta, sou lá sueca, vou dizer para o Hugo meter lá as merdas dele, minis, e as bananas, se calhar congelo em rodelas, mas já tenho tantas congeladas em rodelas, porque é que compro sempre ou bananas a mais ou bananas de todo e depois todos reclamam que não há bananas, e o armário, temos mesmo de o tirar, ontem não escrevi a cena do dia, hoje tenho de escrever duas, não escapas, e vai ser quando te levantares e já tiveres decidido o que fazer às bananas, há também salada, não te esqueças de fazer salada hoje e já agora compra papel higiénico, já ligaste à Segurança Social? O Montepio, meu deus, tambem tenho de ir ao Montepio, faço isso tudo depois da escola, mas depois há a grelha para o dia e é grande, já são muitas coisas e não posso esquecer-me de ir mostrar os exames ao médico, será que o período demora a vir? Perder 200g por semana não é assim tão desastroso, se pensar bem, acabarão por ser 10 kg um dia, o que importa é confiar no processo e não te esqueças de te inscreveres na zumba amanhã, não podes fazer aulas de graça. E tens de escrever sobre mugunzá.
domingo, 26 de outubro de 2014
Não é um post bonitinho (não que algum seja)
A minha mãe teve óbito declarado às 00:13 do dia 26/10/2004, fuso horário de Fortaleza, Brasil.
Sei que nem toda a gente assinala aniversário de morte, mas eu assinalo, sim. Só ignorei o primeiro, porque ainda estava a ignorar a própria dor.
Nos anos seguintes, arranjei sempre uma forma singela de marcar o dia. Em 2007, 20 dias depois de casar, atirei o meu buquê ao mar para ela, sozinha, ali ao pé do Alcatruz. Só saí de perto quando as flores estavam completamente destruídas pela rebentação.
A cada aniversário de morte da minha mãe, despeço-me dela, digo que será o primeiro ano sem sofrimento. E nunca é. Este ano tinha em mente fazer milhentas coisas para a celebrar, mas já vi que não vai ser possível, porque já estou tristíssima, porque já estou revoltada, porque já tenho 28 anos outra vez e acabei de ficar órfã e terei de desmontar a casa em que vivemos as duas durante anos. Só as duas. E não sei ligar a máquina de lavar, tem truque. E passarei um mês a ligar-lhe para o telemóvel para comentar banalidades.
Tanta falta que ela me faz. Tantos anos a ignorar a falta que ela me fazia e, neste, logo neste, cai-me tudo em cima. Já disse várias vezes que as minhas saudades não são doces, não são bonitas. As minhas saudades são ácidas, corrosivas, mazinhas. Não há ternura, não há amor, não há gratidão, nem sequer há um vazio.
É uma ferida que está ali, aparentemente cicatrizada, juramos que está cicatrizada, mas que de vez em quando lá vem qualquer coisa e passa o algodão com álcool por cima. E vemos que não está cicatrizada coisíssima nenhuma, vemos que está fresca, em carne viva. Não tens mãe. Não tens a quem ligar sobre uns sapatos ou uma doença. Não tens.
Sei que nem toda a gente assinala aniversário de morte, mas eu assinalo, sim. Só ignorei o primeiro, porque ainda estava a ignorar a própria dor.
Nos anos seguintes, arranjei sempre uma forma singela de marcar o dia. Em 2007, 20 dias depois de casar, atirei o meu buquê ao mar para ela, sozinha, ali ao pé do Alcatruz. Só saí de perto quando as flores estavam completamente destruídas pela rebentação.
A cada aniversário de morte da minha mãe, despeço-me dela, digo que será o primeiro ano sem sofrimento. E nunca é. Este ano tinha em mente fazer milhentas coisas para a celebrar, mas já vi que não vai ser possível, porque já estou tristíssima, porque já estou revoltada, porque já tenho 28 anos outra vez e acabei de ficar órfã e terei de desmontar a casa em que vivemos as duas durante anos. Só as duas. E não sei ligar a máquina de lavar, tem truque. E passarei um mês a ligar-lhe para o telemóvel para comentar banalidades.
Tanta falta que ela me faz. Tantos anos a ignorar a falta que ela me fazia e, neste, logo neste, cai-me tudo em cima. Já disse várias vezes que as minhas saudades não são doces, não são bonitas. As minhas saudades são ácidas, corrosivas, mazinhas. Não há ternura, não há amor, não há gratidão, nem sequer há um vazio.
É uma ferida que está ali, aparentemente cicatrizada, juramos que está cicatrizada, mas que de vez em quando lá vem qualquer coisa e passa o algodão com álcool por cima. E vemos que não está cicatrizada coisíssima nenhuma, vemos que está fresca, em carne viva. Não tens mãe. Não tens a quem ligar sobre uns sapatos ou uma doença. Não tens.
sexta-feira, 24 de outubro de 2014
Notas soltas sobre mercúrio retrógrado
- Toni Morrison, a minha escritora preferida de todo o sempre, diz que ficou deprimida após a morte do pai, e que isso não foi uma coisa má; foi apenas um período de recolha, de para olhar para dentro e fechar-se em si, de não-atividade. Deprimir, para ela, acabava por ser necessário e natural.
- Os culpossauros, ao deprimirem, pensam: qual é o motivo EXATO para deprimir? Não tenho tudo? Uma família linda, saúde, dinheiro no banco? Pensa nas pessoas que não têm nada disso. Não há motivo para deprimir, vamos lá criar um plano de ataque altamente eficaz e pô-lo em execução amanhã mesmo, sem falhas. Claro que, por estarem deprimidos (versão Toni Morrison), não fazem nada disso no dia seguinte, adicionando mais uma camada de culpa ao caparro do espécime.
- Culpossauros extremamente eficazes têm pequenas boias de salvação: canções específicas, imagens da infância, imagens de filmes e livros (em que livro é que, uma vez por ano, se abria a casa e lavava-se tudo, baldes e baldes de água pelo chão a levar o pó todo para fora? A Casa dos Espíritos, será?), ou filmes inteiros. Coisas que os ajude a chegar à hora seguinte ainda com algum grau de eficácia.
- Aniversário da morte da mamãe? Crise genérica? Um ataque de solidão súbito, umas saudades sei lá bem de quê? Uma inquietação pelo que não sei ainda, ou como é que diz a canção? Disse ontem, ao meu irmão, pela primeira vez: acho que estou deprimida há algum tempo e não consigo aceitar isso. E ele: pede ajuda, partilha. Eu odeio ajuda e odeio partilhar negrume, a menos que seja completamente em público aqui no blog (e com um certo grau de anonimato). Quanto maior a necessidade de recolha, maior a minha procura por exteriorizações, porque, né, tenho tudo para estar feliz.
- Isto não é um pedido de ajuda, isto já é a ajuda. :)
- Se tenho um amigo deprimido (versão Toni Morrison), corro a sacudi-lo do banzo, vamos sair, vamos beber, vamos distrair. E se o melhor for o contrário? Vai para casa, dorme mais cedo. Amanhã, quem sabe?
- Temos, todos, culpossauros e outras espécies, que aprender a conviver melhor com o mal estar. Fugimos do mal estar como o diabo da cruz, como se ele nos fosse matar. É disso que tento lembra-me ao desenhar planos infalíveis para não deprimir: que tenho de aprender a sentir-me mal. Como não aprendo, adiciono mais uma camada de culpa ao caparro do espécime.
- Os culpossauros, ao deprimirem, pensam: qual é o motivo EXATO para deprimir? Não tenho tudo? Uma família linda, saúde, dinheiro no banco? Pensa nas pessoas que não têm nada disso. Não há motivo para deprimir, vamos lá criar um plano de ataque altamente eficaz e pô-lo em execução amanhã mesmo, sem falhas. Claro que, por estarem deprimidos (versão Toni Morrison), não fazem nada disso no dia seguinte, adicionando mais uma camada de culpa ao caparro do espécime.
- Culpossauros extremamente eficazes têm pequenas boias de salvação: canções específicas, imagens da infância, imagens de filmes e livros (em que livro é que, uma vez por ano, se abria a casa e lavava-se tudo, baldes e baldes de água pelo chão a levar o pó todo para fora? A Casa dos Espíritos, será?), ou filmes inteiros. Coisas que os ajude a chegar à hora seguinte ainda com algum grau de eficácia.
- Aniversário da morte da mamãe? Crise genérica? Um ataque de solidão súbito, umas saudades sei lá bem de quê? Uma inquietação pelo que não sei ainda, ou como é que diz a canção? Disse ontem, ao meu irmão, pela primeira vez: acho que estou deprimida há algum tempo e não consigo aceitar isso. E ele: pede ajuda, partilha. Eu odeio ajuda e odeio partilhar negrume, a menos que seja completamente em público aqui no blog (e com um certo grau de anonimato). Quanto maior a necessidade de recolha, maior a minha procura por exteriorizações, porque, né, tenho tudo para estar feliz.
- Isto não é um pedido de ajuda, isto já é a ajuda. :)
- Se tenho um amigo deprimido (versão Toni Morrison), corro a sacudi-lo do banzo, vamos sair, vamos beber, vamos distrair. E se o melhor for o contrário? Vai para casa, dorme mais cedo. Amanhã, quem sabe?
- Temos, todos, culpossauros e outras espécies, que aprender a conviver melhor com o mal estar. Fugimos do mal estar como o diabo da cruz, como se ele nos fosse matar. É disso que tento lembra-me ao desenhar planos infalíveis para não deprimir: que tenho de aprender a sentir-me mal. Como não aprendo, adiciono mais uma camada de culpa ao caparro do espécime.
quinta-feira, 25 de setembro de 2014
Amor
Dias difíceis em que não me apetece falar, não me apetece elaborar, só ver séries e ler na cama e dormir cedo, nem adianta perguntar nada, é uma tempestade, Hugo, eu saio dela viva, não te preocupes, mas não me perguntes nada muito complicado nem exijas muito de mim por uns dias que isto vai lá.
Hoje de manhã, junto com as chaves do carro e a lancheira do Gabriel, um CD velho, velhíssimo, dos Secos e Molhados, que, como já devem ter reparado pelas vezes que posto vídeos do youtubes aqui, é a minha salvação, o meu panic buttom, a safe word, o sítio onde tudo se resolve. Achava que o CD já tinha ido para o lixo. Pego no CD. Nenhum bilhete, nenhum miminho, nada.
Não sei se foi de propósito, provavelmente não (se não estaria lá o tal bilhete), o que torna o que temos muito mais sagrado, muito além do visível, muito além do elaborável. Levei o CD para o carro, liguei o ar-condicionado e pus aquilo a bombar a sério, a bombar como os kizombeiros que às vezes passam por aqui. Ouvi as mesmas canções de sempre várias vezes seguidas, em loop. A sentir a cura enquanto berrava "o verme passeia na lua cheia", que canto ao Gabriel desde as seis semanas de gravidez e ele não liga nenhuma, mas que, caramba, tem um verdadeiro poder de Ave Maria, de mantra, de chacras a mudar em mim quanto mais alta se torna a voz do Ney. Que belíssima ideia, deixar ali o CD para falar comigo.
Tendo sido uma atitude consciente ou não, Amor é isto, e mais isto do LP Secos e Molhados, de dezembro de 1973, mês em que o meu marido veio ao mundo, e que lhe dedico de coração. :)
Hoje de manhã, junto com as chaves do carro e a lancheira do Gabriel, um CD velho, velhíssimo, dos Secos e Molhados, que, como já devem ter reparado pelas vezes que posto vídeos do youtubes aqui, é a minha salvação, o meu panic buttom, a safe word, o sítio onde tudo se resolve. Achava que o CD já tinha ido para o lixo. Pego no CD. Nenhum bilhete, nenhum miminho, nada.
Não sei se foi de propósito, provavelmente não (se não estaria lá o tal bilhete), o que torna o que temos muito mais sagrado, muito além do visível, muito além do elaborável. Levei o CD para o carro, liguei o ar-condicionado e pus aquilo a bombar a sério, a bombar como os kizombeiros que às vezes passam por aqui. Ouvi as mesmas canções de sempre várias vezes seguidas, em loop. A sentir a cura enquanto berrava "o verme passeia na lua cheia", que canto ao Gabriel desde as seis semanas de gravidez e ele não liga nenhuma, mas que, caramba, tem um verdadeiro poder de Ave Maria, de mantra, de chacras a mudar em mim quanto mais alta se torna a voz do Ney. Que belíssima ideia, deixar ali o CD para falar comigo.
Tendo sido uma atitude consciente ou não, Amor é isto, e mais isto do LP Secos e Molhados, de dezembro de 1973, mês em que o meu marido veio ao mundo, e que lhe dedico de coração. :)
quarta-feira, 24 de setembro de 2014
A mãe
A menina escreveu uma história. “Mas quão melhor seria se você escrevesse um romance”, disse a mãe. A menina construiu uma casa de bonecas. “Mas quão melhor seria se fosse uma casa de verdade”, disse a mãe. A menina fez um travesseirinho para o pai. “Mas o quão mais útil seria uma colcha”, disse a mãe. A menina cavou um pequeno buraco no jardim. “Mas o quão melhor seria se você cavasse um buraco grande”, disse a mãe.
A menina cavou um buraco grande e entrou nele para dormir. “Mas quão melhor seria se você dormisse para sempre”, disse a mãe.
[Lydia Davis]
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
Primavera nos dentes
"Quem tem consciência pra se ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contramola que resiste
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contramola que resiste
Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
Entre os dentes segura a primavera."
A arte de ter dias maus: não domino.
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
Entre os dentes segura a primavera."
A arte de ter dias maus: não domino.
domingo, 21 de setembro de 2014
Toda crise é uma oportunidade? (ou o fim do verão)
Fora os dias maravilhosos no Alentejo, não deixou saudades. Agosto foi marcado pela correria dos exames à mama e acabou com a bênção do diagnóstico, sim, mas foi horrível. Houve coisas boas no meio da crise, claro, há sempre - toda crise é uma oportunidade, não é o que dizem? - e, mesmo obcecada e doida, gostei de sentir o carinho e a preocupação à minha volta. Pessoas que não souberam disto antes do resultado da biópsia: foi para vos proteger. Na verdade, não contei a ninguém por livre vontade, as pessoas é que iam aparecendo em momentos cruciais onde eu estava com a velha cara de cu. Vê-las preocupadas comigo foi lisonjeiro, como disse, mas também, às tantas, achei desnecessário. Claro, isto pode ser o culpossauro a falar, a Indigna de Carinho. E já divago. Sigamos.
Toda crise é uma oportunidade e também tive uns momentos assim neste agosto horroroso. Sinto-me mais calma e centrada, menos doida. Ter alucinado com a minha mãe pode ter ajudado (ora bem, eis o tipo de coisa que devia guardar para o journaling, mas que se lixe). Sinto-me melhor comigo mesma, cliché dos clichés. A minha mãe ajudou bastante, porque não apareceu como uma santa mãezinha a pegar-me ao colo, nada disso. Apareceu dura como sempre foi comigo. Mas não falou do que eu julguei que ela falar, não criticou o óbvio (e visível). Ela foi a minha mãe como eu a adorava, porque caramba, como eu a adorava. Dez anos depois e ainda me debato com problemas que ficaram por resolver, e critico-a enraivecida muitas vezes por ter deixado tantos buracos abertos. Mas adorava-a. Adorava-a, aquele sentido de humor porquito, o dom de ver as intenções das pessoas, o conhecimento de mundo. Adorava-a. Tanto que foi com ela que eu alucinei, e não com nenhuma Nossa Senhora ou Fada Fófis. Lembrar-me disto no meio de tanto sentimento mal resolvido foi outra bênção, outro "benigno" que recebi.
Toda crise é uma oportunidade, certo? Não sei se todas, mas esta também me deu a oportunidade de abrir caminho por um pântano de frustração e excesso de informação. Perdi e recuperei muitos quilos em pouco mais de dois anos, e vi que tinha tomado o processo por garantido. O processo não é garantido. Nenhuma relação - seja com o marido, filhos, com o próprio corpo ou própria alma - é garantida. Tudo exige esforço e amor, e uma boa dose de desconfiança quando tudo parece andar sobre carris e a tentação de olhar para o lado é grande. O meu corpo grita por atenção, e já está a tê-la. Merece tanta atenção - ou mais, porque tem sido tão negligenciado - quanto outras partes da minha vida. E não foi a minha mãe que me disse isso.
Enfim, cá vamos em frente, eu que achava que ia ter praia até outubro. Pelos vistos, São Pedro também não teve um verão por aí além e decidiu pôr-lhe cobro. Eu entendo, seu moço.
Eu entendo.
Toda crise é uma oportunidade e também tive uns momentos assim neste agosto horroroso. Sinto-me mais calma e centrada, menos doida. Ter alucinado com a minha mãe pode ter ajudado (ora bem, eis o tipo de coisa que devia guardar para o journaling, mas que se lixe). Sinto-me melhor comigo mesma, cliché dos clichés. A minha mãe ajudou bastante, porque não apareceu como uma santa mãezinha a pegar-me ao colo, nada disso. Apareceu dura como sempre foi comigo. Mas não falou do que eu julguei que ela falar, não criticou o óbvio (e visível). Ela foi a minha mãe como eu a adorava, porque caramba, como eu a adorava. Dez anos depois e ainda me debato com problemas que ficaram por resolver, e critico-a enraivecida muitas vezes por ter deixado tantos buracos abertos. Mas adorava-a. Adorava-a, aquele sentido de humor porquito, o dom de ver as intenções das pessoas, o conhecimento de mundo. Adorava-a. Tanto que foi com ela que eu alucinei, e não com nenhuma Nossa Senhora ou Fada Fófis. Lembrar-me disto no meio de tanto sentimento mal resolvido foi outra bênção, outro "benigno" que recebi.
Toda crise é uma oportunidade, certo? Não sei se todas, mas esta também me deu a oportunidade de abrir caminho por um pântano de frustração e excesso de informação. Perdi e recuperei muitos quilos em pouco mais de dois anos, e vi que tinha tomado o processo por garantido. O processo não é garantido. Nenhuma relação - seja com o marido, filhos, com o próprio corpo ou própria alma - é garantida. Tudo exige esforço e amor, e uma boa dose de desconfiança quando tudo parece andar sobre carris e a tentação de olhar para o lado é grande. O meu corpo grita por atenção, e já está a tê-la. Merece tanta atenção - ou mais, porque tem sido tão negligenciado - quanto outras partes da minha vida. E não foi a minha mãe que me disse isso.
Enfim, cá vamos em frente, eu que achava que ia ter praia até outubro. Pelos vistos, São Pedro também não teve um verão por aí além e decidiu pôr-lhe cobro. Eu entendo, seu moço.
Eu entendo.
domingo, 14 de setembro de 2014
Um cemitério lisboeta
Verde, muito verde, um silêncio absoluto, só quebrado pelas brincadeiras dos meninos da escola dominical lá longe. Sinais a proibirem flores de plástico e a sugerirem uma pequena doação em troca da visita. Uma elegância que contrasta em absoluto com os extravagantes - e enormes - cemitérios lisboetas construídos às pressas durante a epidemia de cólera no começo (ou meio?) do século XIX. Este é mais velho.Mais silencioso, com mortos bastante mais discretos. Mortos ingleses, portanto.
O cemitério só está aberto das 10h às 13h. Vocês podem dizer que é por causa da falta de pessoal ou da anglo-antipatia (que, para mim, não passa de um mito). Mas eu cá tenho outra teoria.
Os britânicos defuntos precisam da sua privacidade para apreciarem uma boa chávena de chá e sandes de pepino às cinco. Naturalmente.
O cemitério só está aberto das 10h às 13h. Vocês podem dizer que é por causa da falta de pessoal ou da anglo-antipatia (que, para mim, não passa de um mito). Mas eu cá tenho outra teoria.
Os britânicos defuntos precisam da sua privacidade para apreciarem uma boa chávena de chá e sandes de pepino às cinco. Naturalmente.
Ele já adora estes passeios, algo que me aquece a alma. |
quarta-feira, 10 de setembro de 2014
Moça bonita, olá, que saudades!
Lembras-te daquela nossa penúltima conversa no Muxaxo? Sobre o tempo e a escrita e tanta coisa boa que vinha sempre ao de cima. A Casaca disse-te que ia escrever-te, no sentido de pegar em ti e transformar-te em palavras, e tantas palavras que tu és, mulher! "Um livro para ti, e não sobre ti", que eras menina discreta e a Casaca sabia disso.
Amigos, venham todos prestigiar o nascimento deste livro lindo, que só podia ser lindo porque é assim que ela escreve, e mais lindo é porque é para alguém que ela amou. E é sobre várias outras coisas também, porque a Casaca é menina para mergulhar sem medo nos sentimentos e acontecimentos da vida. Não é uma viagem só ao fim do coração, é ao fundo de muito daquilo que nos constrói e destrói todos os dias.
Apareçam! Para quem não me conhece, serei a bolinha de batom bordeau a olhar embevecida para a sua amiga-irmã a falar nas mesinhas. Inconfundível.
Amigos, venham todos prestigiar o nascimento deste livro lindo, que só podia ser lindo porque é assim que ela escreve, e mais lindo é porque é para alguém que ela amou. E é sobre várias outras coisas também, porque a Casaca é menina para mergulhar sem medo nos sentimentos e acontecimentos da vida. Não é uma viagem só ao fim do coração, é ao fundo de muito daquilo que nos constrói e destrói todos os dias.
Apareçam! Para quem não me conhece, serei a bolinha de batom bordeau a olhar embevecida para a sua amiga-irmã a falar nas mesinhas. Inconfundível.
quinta-feira, 4 de setembro de 2014
Journaling
Para péssimas meditadoras como eu, tem sido um plano B fantástico.
Antes de fazer seja o que for, programo um timer para 15 minutos e escrevo sem parar, sobre o que me apetecer, tudo que me ocorre (ou até mesmo que nada me ocorre), sem qualquer preocupação estilística - muito menos moral - num sítio cuja inacessibilidade de outros esteja garantida. Não o fazia desde os 16, 17 anos e tem sido um verdadeiro bálsamo, um encontro de mim comigo mesma nesta era de hiperpartilha. É raro ler o que escrevi depois. Talvez um dia, nem que seja para me rir da falta de preocupação estilística ou moral.
Como tem sido bom para mim, recomendo para toda a gente, mas especialmente para maus meditadores. Se é para estar com pensamentos a zunir enquanto tentamos concentrar-nos na respiração, mais vale dar atenção aos pensamentos do que à respiração, não? Se calhar não, mas a verdade é que saio das minhas sessões (comecei há cerca de uma semana, um pouco mais) muitíssimo relaxada e pronta para o dia que se segue.
Antes de fazer seja o que for, programo um timer para 15 minutos e escrevo sem parar, sobre o que me apetecer, tudo que me ocorre (ou até mesmo que nada me ocorre), sem qualquer preocupação estilística - muito menos moral - num sítio cuja inacessibilidade de outros esteja garantida. Não o fazia desde os 16, 17 anos e tem sido um verdadeiro bálsamo, um encontro de mim comigo mesma nesta era de hiperpartilha. É raro ler o que escrevi depois. Talvez um dia, nem que seja para me rir da falta de preocupação estilística ou moral.
Como tem sido bom para mim, recomendo para toda a gente, mas especialmente para maus meditadores. Se é para estar com pensamentos a zunir enquanto tentamos concentrar-nos na respiração, mais vale dar atenção aos pensamentos do que à respiração, não? Se calhar não, mas a verdade é que saio das minhas sessões (comecei há cerca de uma semana, um pouco mais) muitíssimo relaxada e pronta para o dia que se segue.
sexta-feira, 29 de agosto de 2014
Férias a sério
Seria sempre um problema da escola pública, já eu sabia: um mês e meio com ele em casa, que é coisa a que estou pouco habituada. Estava stressadíssima com isso, como é que ia entreter a coisinha durante 45 dias?
Nas primeiras duas semanas decidi que era filha de Deus e mandei-o para um atl privado num sítio que ele adora e correu muitíssimo bem. Na terceira semana, andou comigo de um lado para o outro durante os exames do Indesejável - sem dar por nada, obviamente. Para ele, eram passeios. Escrevo de manhã, fazemos coisas à tarde, vamos ter com amigos à praia ou ao parque. Também esteve com a avó em Moscavide, que ele adora: vai ao peixe, ao pão, às capelinhas todas. Um mimadão.
Na próxima semana está a Bel de férias, a minha Santa Bel, e vai-me aliviar um ou dois dias também. Depois ainda há a outra semana. Enfim, elas vão passando e a verdade é que entre as minhas tardes, a avó, o trabalho do pai (também tem lá ido) e a Bel, ele não tem apanhado seca nenhuma. É como eram as minhas férias, três meses em casa (e não mês e meio) sem que ninguém se preocupasse muito com o meu entretenimento. Porra, só não ir para a escola já era um bónus.
Enfim, sei que sou uma sortuda, trabalho em casa e, mesmo assim, não tenho o dia cheio e tenho algumas pessoas que podem ajudar-me - mas sinto que foi a primeira vez que a criança teve férias mesmo como deve ser, em casa, a ver TV, sem programação.
A ver se o luxo se mantém em 2015.
Nas primeiras duas semanas decidi que era filha de Deus e mandei-o para um atl privado num sítio que ele adora e correu muitíssimo bem. Na terceira semana, andou comigo de um lado para o outro durante os exames do Indesejável - sem dar por nada, obviamente. Para ele, eram passeios. Escrevo de manhã, fazemos coisas à tarde, vamos ter com amigos à praia ou ao parque. Também esteve com a avó em Moscavide, que ele adora: vai ao peixe, ao pão, às capelinhas todas. Um mimadão.
Na próxima semana está a Bel de férias, a minha Santa Bel, e vai-me aliviar um ou dois dias também. Depois ainda há a outra semana. Enfim, elas vão passando e a verdade é que entre as minhas tardes, a avó, o trabalho do pai (também tem lá ido) e a Bel, ele não tem apanhado seca nenhuma. É como eram as minhas férias, três meses em casa (e não mês e meio) sem que ninguém se preocupasse muito com o meu entretenimento. Porra, só não ir para a escola já era um bónus.
Enfim, sei que sou uma sortuda, trabalho em casa e, mesmo assim, não tenho o dia cheio e tenho algumas pessoas que podem ajudar-me - mas sinto que foi a primeira vez que a criança teve férias mesmo como deve ser, em casa, a ver TV, sem programação.
A ver se o luxo se mantém em 2015.
quarta-feira, 27 de agosto de 2014
"Tapa os olhos, olha para mim"
Eu e tu sabemos que estiveste lá o tempo todo. Não doente, que é como eu te lembro melhor, mas saudável, cabelo encaracolado nos ombros, camisola branca com renda na gola, calças pretas, uma sandálias pretas antigas da Redley. Batom vermelho, brincos de pérola, óculos gucci, os preferidos. Conversámos muito enquanto eu estava dentro daquela maquineta. No fim, fizeste-me companhia na sala de espera. O mais estranho de tudo é que em nenhum momento falaste daquilo que nos separa, daquilo por que me condenas. Nem de ti, de onde estavas. Só do momento. E de merdas sem importância nenhuma, que é o que mais falávamos.
Dois dias depois lá estavas na sala de espera outra vez, com a mesma roupa, sem ter marcado nada. Estivemos lá eu, tu, o Hugo e o Gabriel. E lá ficaste quando entrei para a biópsia. E lá estavas quando saí.
Adoro pensar no que o padrinho de casamento diria das minhas alucinações, algo na linha de "o medo deve lançar umas hormonas maradas na corrente sanguínea", e sim, deve ser isso ou algo parecido, mas agradeço tanto tê-las tido. Isto para o caso de teres sido uma alucinação, mãe. Mas, na verdade, qual é a diferença?
PS - é benigno.
Dois dias depois lá estavas na sala de espera outra vez, com a mesma roupa, sem ter marcado nada. Estivemos lá eu, tu, o Hugo e o Gabriel. E lá ficaste quando entrei para a biópsia. E lá estavas quando saí.
Adoro pensar no que o padrinho de casamento diria das minhas alucinações, algo na linha de "o medo deve lançar umas hormonas maradas na corrente sanguínea", e sim, deve ser isso ou algo parecido, mas agradeço tanto tê-las tido. Isto para o caso de teres sido uma alucinação, mãe. Mas, na verdade, qual é a diferença?
PS - é benigno.
quarta-feira, 20 de agosto de 2014
Voo
Ontem tive um dia muito, muito difícil. No futuro, falo sobre o dia de ontem. Mas o que importa é que no fim de um dia de merda, ouvi, num café, uma canção que me deixou BEM. Um vira-energia instantâneo, coisa muito para a frente. Agarro no Shazam mas o som está baixo demais, não apanha. Vou ter com a empregada que me diz que é impossível pôr aquilo a tocar outra vez, é uma playlist do computador do chefe.
Merda, merda, merda. Toda a gente precisa de uma canção SOS, e aquela era a minha, eu tinha a certeza.
Hoje estou na ressaca do dia de ontem, a energia muito, muito fraca. Estou lenta, pesada, negativa. E tenho cenas para escrever, que a novela não espera. Por isso, precisava de virar a energia, e já disse algures que quando preciso de virar a energia, cochilo. Pus uma playlist aleatória a tocar no youtube e fui deitar-me.
Fui acordada pela canção de ontem.
Ela veio ter comigo no meio de uma playlist do youtube.
A minha canção SOS.
(Tinha de ser Secos & Molhados. Como não?)
O bico da ave
Da ave que voa
É a proa da nave
Da nave que voa
As vigias da nave
Da nave que voa
São os olhos da ave
Da ave que voa
O coração da ave.
Da ave que voa
É o motor da nave
Da nave que voa
As asas da nave
Da nave que voa
São as asas da ave
Da ave que voa
A alma da ave
Da ave que voa
É a alma do homem
Do homem que voa
Merda, merda, merda. Toda a gente precisa de uma canção SOS, e aquela era a minha, eu tinha a certeza.
Hoje estou na ressaca do dia de ontem, a energia muito, muito fraca. Estou lenta, pesada, negativa. E tenho cenas para escrever, que a novela não espera. Por isso, precisava de virar a energia, e já disse algures que quando preciso de virar a energia, cochilo. Pus uma playlist aleatória a tocar no youtube e fui deitar-me.
Fui acordada pela canção de ontem.
Ela veio ter comigo no meio de uma playlist do youtube.
A minha canção SOS.
(Tinha de ser Secos & Molhados. Como não?)
O bico da ave
Da ave que voa
É a proa da nave
Da nave que voa
As vigias da nave
Da nave que voa
São os olhos da ave
Da ave que voa
O coração da ave.
Da ave que voa
É o motor da nave
Da nave que voa
As asas da nave
Da nave que voa
São as asas da ave
Da ave que voa
A alma da ave
Da ave que voa
É a alma do homem
Do homem que voa
terça-feira, 5 de agosto de 2014
Dia de exames de prevenção
Filhas e netas - neste caso, filha e neta - de cancro da mama sabem como é este dia, mesmo que esteja tudo em dia, mesmo que não haja nenhum altinho suspeito, nada.
Por aqui, á se foram as unhas de gel, as unhas normais, as peles.
Por aqui, á se foram as unhas de gel, as unhas normais, as peles.
sábado, 26 de julho de 2014
O verão e a aldeia, notas soltas
- Não é uma aldeia histórica, cheia de ruínas e camadas de civilizações diferentes, como seria de esperar vindo de nós, amantes de calhau que somos. É uma aldeia operária, fundada em virtude da mina, fileiras e fileiras de casinhas minúsculas brancas. À volta da aldeia, as ruínas da mina, formidáveis. Um cemitério abandonado no meio de nenhures com dez campas ao abandono. Um pequeno museu. E a praia. Mas primeiro, a mina, lugar mágico e um bocado assustador.
- No caminho para o corte, um terreno pequenino, murado, no meio do nada. O velho mais velho do mundo disse-nos: aquilo foram os ingleses da mina que fizeram para eles, é muito, muito velho. Tinha de lá ir, claro. Dez mortos esquecidos, provavelmente da altura em que o cemitério foi aberto (1860s, pouco depois da abertura da mina), com terra trazida de Inglaterra via mar.
- A praia foi, de longe, a melhor em que já estive em Portugal. Água sempre a 25/28 graus, chapéus de sol gratuitos, areal pequenino e limpo. Bar muito agradável, com preços decentes. Um anfiteatro e um parque infantil. Vinguei-me de décadas de rabo na areia por achar a água deste país demasiado fria seja onde for. Apanhei um escaldão. Fui feliz com brincadeiras parvas dentro de água. Pedalei uma gaivota. Enfim, foram férias balneares de altíssima qualidade. Mas voltemos à aldeia.
- A aldeia tem um multibanco. Um sítio onde se vende jornais. Uma micro-mercearia. Uma banca de mercado. É, portanto, um desafio. Vale tudo, menos stressar com a aldeia.
- Notícia maravilhosa da aldeia: as escolas primárias da zona estão todas em funcionamento, inclusive houve uma que reabriu. Para quem cruza o Alentejo pelas nacionais e vê aquela quantidade de escolas primárias lindas, aquelas fachadas imponentes e portões altos, fechadas a cadeados enferrujados, com baloiços e escorregas tristes lá dentro, é uma notícia no mínimo revigorante Os moradores perguntaram-nos: então o vosso menino vem para esta escola ou a de Corte de Pinto? Nenhuma delas, senhores, que pena. Mas iria, iria já hoje se a vida fosse outra, se fôssemos outros.
- O pôr do sol na Tapada Grande é de filme, pelo que passámos lá a maioria deles, sem saber que a vida explodia no centro da aldeia a partir das 22h, num cafezinho que serve o melhor chouriço assado que alguma vez vão provar. Criançada à solta na rua sem carros, Gabriel enlouquecido. Tantos amigos novos, sotaques diferentes. Francês, muito francês e espanhol, que em nada atrapalhavam a gandaia. Às 23h, uma hora atrasados, começou o espetáculo de variedades - a aparelhagem falhou-lhes e tiveram de ir mandar buscar outra sabe lá Deus onde.
- 3 eur para um adulto se sentar, 2 eur para as crianças, portanto, a maioria do público preferiu abancar no muro da igreja, mesmo. Mas a verdade é que aquela família formidável conseguiu, sim, ganhar um bom dinheiro naquela noite: rifas, sorteios, brincadeiras várias. Fiquei parva, pensava que iam sair de lá com os bilhetes dos Lyra e não, muito longe disso. Tenho muito que aprender. Hoje de manhã almoçavam todos numa mesinha improvisada, ao lado do palco. Uma família grande. Tendas.
- O meu filho ofereceu-se para o espetáculo de magia. Foram poucos os momentos em que o vi tão feliz, a arrancar gargalhadas da aldeia inteira (que arrancou!). E a verdade é o espetáculo me divertiu a sério. Como dizia a senhora ao meu lado: já vi este senhor várias vezes a fazer a mesma coisa, mas como não sei como faz, acho sempre muita graça.
- Hoje de manhã, a tapada estava cheia de gente - sendo que a casa que alugámos é mesmo em frente à praia. De alguma maneira, parte daquela magia de casas brancas, silêncio de mina, show itinerante e café ao calor tinha acabado. Eu estava um bocado de coração partido, porque, depois de uma semana, só agora começava a entrar no ritmo da aldeia e a apreciá-lo por tudo que ele trazia de bom. Resolvemos antecipar a volta.
- A promessa é voltar lá no ano que vem. Cá para mim, ainda volto neste ano, em setembro. Somos bichos de cidade, eu e o Hugo. neuróticos e carentes de estímulo. Quando éramos mais novos, tínhamos essa experiência de desacelerar - ele ia com a família para a Fonte da Telha, eu ia para quintas e casas de interior do meu nordeste. É bom que ainda existam lugares com outra batida. É bom que o Gabriel possa senti-la, o meu bichinho de cidade, sem terra para onde voltar. Acho que adotámos aquela terra no meio do nada como nossa. Acho que já a amamos. Não foram umas férias normais. Foram umas férias com sabor a regresso a um sítio onde nunca estivemos mas por que, de alguma forma, ansiávamos.
A água é ácida, vermelha. |
- No caminho para o corte, um terreno pequenino, murado, no meio do nada. O velho mais velho do mundo disse-nos: aquilo foram os ingleses da mina que fizeram para eles, é muito, muito velho. Tinha de lá ir, claro. Dez mortos esquecidos, provavelmente da altura em que o cemitério foi aberto (1860s, pouco depois da abertura da mina), com terra trazida de Inglaterra via mar.
Ninguém cuida do cemitério há dezenas de anos. Mas o cadeado é estranhamente novo. |
- A praia foi, de longe, a melhor em que já estive em Portugal. Água sempre a 25/28 graus, chapéus de sol gratuitos, areal pequenino e limpo. Bar muito agradável, com preços decentes. Um anfiteatro e um parque infantil. Vinguei-me de décadas de rabo na areia por achar a água deste país demasiado fria seja onde for. Apanhei um escaldão. Fui feliz com brincadeiras parvas dentro de água. Pedalei uma gaivota. Enfim, foram férias balneares de altíssima qualidade. Mas voltemos à aldeia.
- A aldeia tem um multibanco. Um sítio onde se vende jornais. Uma micro-mercearia. Uma banca de mercado. É, portanto, um desafio. Vale tudo, menos stressar com a aldeia.
- Notícia maravilhosa da aldeia: as escolas primárias da zona estão todas em funcionamento, inclusive houve uma que reabriu. Para quem cruza o Alentejo pelas nacionais e vê aquela quantidade de escolas primárias lindas, aquelas fachadas imponentes e portões altos, fechadas a cadeados enferrujados, com baloiços e escorregas tristes lá dentro, é uma notícia no mínimo revigorante Os moradores perguntaram-nos: então o vosso menino vem para esta escola ou a de Corte de Pinto? Nenhuma delas, senhores, que pena. Mas iria, iria já hoje se a vida fosse outra, se fôssemos outros.
- O pôr do sol na Tapada Grande é de filme, pelo que passámos lá a maioria deles, sem saber que a vida explodia no centro da aldeia a partir das 22h, num cafezinho que serve o melhor chouriço assado que alguma vez vão provar. Criançada à solta na rua sem carros, Gabriel enlouquecido. Tantos amigos novos, sotaques diferentes. Francês, muito francês e espanhol, que em nada atrapalhavam a gandaia. Às 23h, uma hora atrasados, começou o espetáculo de variedades - a aparelhagem falhou-lhes e tiveram de ir mandar buscar outra sabe lá Deus onde.
- 3 eur para um adulto se sentar, 2 eur para as crianças, portanto, a maioria do público preferiu abancar no muro da igreja, mesmo. Mas a verdade é que aquela família formidável conseguiu, sim, ganhar um bom dinheiro naquela noite: rifas, sorteios, brincadeiras várias. Fiquei parva, pensava que iam sair de lá com os bilhetes dos Lyra e não, muito longe disso. Tenho muito que aprender. Hoje de manhã almoçavam todos numa mesinha improvisada, ao lado do palco. Uma família grande. Tendas.
Bilhetes que eram rifas de garrafas de espumante. Não ganhámos nenhuma. |
- O meu filho ofereceu-se para o espetáculo de magia. Foram poucos os momentos em que o vi tão feliz, a arrancar gargalhadas da aldeia inteira (que arrancou!). E a verdade é o espetáculo me divertiu a sério. Como dizia a senhora ao meu lado: já vi este senhor várias vezes a fazer a mesma coisa, mas como não sei como faz, acho sempre muita graça.
- Hoje de manhã, a tapada estava cheia de gente - sendo que a casa que alugámos é mesmo em frente à praia. De alguma maneira, parte daquela magia de casas brancas, silêncio de mina, show itinerante e café ao calor tinha acabado. Eu estava um bocado de coração partido, porque, depois de uma semana, só agora começava a entrar no ritmo da aldeia e a apreciá-lo por tudo que ele trazia de bom. Resolvemos antecipar a volta.
- A promessa é voltar lá no ano que vem. Cá para mim, ainda volto neste ano, em setembro. Somos bichos de cidade, eu e o Hugo. neuróticos e carentes de estímulo. Quando éramos mais novos, tínhamos essa experiência de desacelerar - ele ia com a família para a Fonte da Telha, eu ia para quintas e casas de interior do meu nordeste. É bom que ainda existam lugares com outra batida. É bom que o Gabriel possa senti-la, o meu bichinho de cidade, sem terra para onde voltar. Acho que adotámos aquela terra no meio do nada como nossa. Acho que já a amamos. Não foram umas férias normais. Foram umas férias com sabor a regresso a um sítio onde nunca estivemos mas por que, de alguma forma, ansiávamos.
sexta-feira, 18 de julho de 2014
As fases da descoberta da avó Mel
A primeira foi gira, muito Marvel: tinha uma avó com asas, que voava, que se comunicava por telepatia durante o sonho, morava no céu e protegia-o de tudo e de todos. Nenhum amigo tem uma avó assim, portanto, ponto para ele.
Mas ultimamente anda ansioso. Quer falar com ela, quer saber onde está. Acha que não vem cá porque não quer, e não entende que não pode visitá-la. Não entende porque vamos ver a avó Lurdes e a Bel e não podemos ir ter com a avó Mel.
Ontem a coisa atingiu um novo patamar: enquanto víamos um documentário sobre o Tetris, jogo preferido da dona Melânia e que ela dominava como poucos, o Gabriel começou a perguntar sobre o que realmente aconteceu: se o corpo dela começou a estragar-se. Se doeu muito. Se não conseguiu ficar boa. Nunca lhe falei do que aconteceu à minha mãe, pelo que não entendo muito bem de onde veio isto.
Creio que chegou a altura de avó Mel ganhar contornos humanos, que ainda não teve. Ele pede isso, precisa disso, e por mais mal resolvida que eu seja com a morte da minha mãe, não lhe posso negar a avó. Disse-lhe que este fim de semana íamos ver fotografias. "Mas ela não é invisível?" É, filho, mas vamos ver fotos de antes de ela se tornar invisível. "Antes de morrer?" Sim, antes de morrer.
Mas ultimamente anda ansioso. Quer falar com ela, quer saber onde está. Acha que não vem cá porque não quer, e não entende que não pode visitá-la. Não entende porque vamos ver a avó Lurdes e a Bel e não podemos ir ter com a avó Mel.
Ontem a coisa atingiu um novo patamar: enquanto víamos um documentário sobre o Tetris, jogo preferido da dona Melânia e que ela dominava como poucos, o Gabriel começou a perguntar sobre o que realmente aconteceu: se o corpo dela começou a estragar-se. Se doeu muito. Se não conseguiu ficar boa. Nunca lhe falei do que aconteceu à minha mãe, pelo que não entendo muito bem de onde veio isto.
Creio que chegou a altura de avó Mel ganhar contornos humanos, que ainda não teve. Ele pede isso, precisa disso, e por mais mal resolvida que eu seja com a morte da minha mãe, não lhe posso negar a avó. Disse-lhe que este fim de semana íamos ver fotografias. "Mas ela não é invisível?" É, filho, mas vamos ver fotos de antes de ela se tornar invisível. "Antes de morrer?" Sim, antes de morrer.
terça-feira, 15 de julho de 2014
O calcanhar de Aquiles da sombra
Não é porque dizemos a nós mesmos ISTO ACABA AGORA que isto acaba agora. Não é porque analisamos tudo ao mais ínfimo pormenor que a coisa se torna menos avassaladora. Não é por dizermos a nós mesmos que tudo que sentimos é uma estupidez que a coisa se torna menor. Distrair-me do que me incomoda também provou ser exercício fútil. Enumerar as coisas boas da vida também tem duração limitada contra a dita cuja.
Ainda não descobri o ponto fraco da sombra, mas lá chegarei.
Ou isso ou aceitar, finalmente, que a vida é cíclica e que Mercúrio fica retrógrado às vezes, que haverá, nos tais ciclos, coisas que me ultrapassam por completo, e que tudo isto é lindo, tudo isto é vida, tudo isto é património.
AnaMê, tens razão numa coisa que me disseste há não muito tempo: desconfiavas que eu falava pouco e falava tarde. Talvez o ponto fraco da sombra passe por pedir ajuda (ou perspectiva, é a mesma coisa) mais cedo e com menos peneiras. Talvez experimente isso.
Ainda não descobri o ponto fraco da sombra, mas lá chegarei.
Ou isso ou aceitar, finalmente, que a vida é cíclica e que Mercúrio fica retrógrado às vezes, que haverá, nos tais ciclos, coisas que me ultrapassam por completo, e que tudo isto é lindo, tudo isto é vida, tudo isto é património.
AnaMê, tens razão numa coisa que me disseste há não muito tempo: desconfiavas que eu falava pouco e falava tarde. Talvez o ponto fraco da sombra passe por pedir ajuda (ou perspectiva, é a mesma coisa) mais cedo e com menos peneiras. Talvez experimente isso.
quarta-feira, 9 de julho de 2014
A segunda coisa que mais adoraria aprender na vida - sendo que a primeira seria a não controlar a ansiedade a comer - era não deixar que uma merda que acontece de manhã - merdinha de nada, caca, minicocó, caganita de mosca - me inundasse o dia inteiro de energia ruim, fazendo com faça más escolhas e arranje desculpas esfarrapadas que justifiquem um dia deprê na cama.
Adoraria aprender a relativizar e dar a volta por cima mais cedo, a remoer menos.
Porra, os dias de vida que eu haveria de ganhar com isso.
Por causa de merda, merdinha de nada, caca, minicocó, caganita de mosca. De problemas grandes e verdadeiros, saio eu bem.
Adoraria aprender a relativizar e dar a volta por cima mais cedo, a remoer menos.
Porra, os dias de vida que eu haveria de ganhar com isso.
Por causa de merda, merdinha de nada, caca, minicocó, caganita de mosca. De problemas grandes e verdadeiros, saio eu bem.
Stopping by Woods on a Snowy Evening
Whose woods these are I think I know.
His house is in the village though;
He will not see me stopping here
To watch his woods fill up with snow.
My little horse must think it queer
To stop without a farmhouse near
Between the woods and frozen lake
The darkest evening of the year.
He gives his harness bells a shake
To ask if there is some mistake.
The only other sound’s the sweep
Of easy wind and downy flake.
The woods are lovely, dark and deep,
But I have promises to keep,
And miles to go before I sleep,
And miles to go before I sleep.
itálicos meus.
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