segunda-feira, 23 de março de 2015

L.

 - Espere, espere, que eu trato disso, não tire as unhas da água. 

Lá vai com o Gabriel pela mão para a casa de banho às pressas, a pouca clientela horrorizada com o espetáculo gore patrocinado pela fragilidade dos vasos capilares do meu filho, que deixou um rasto de sangue de alguns dez metros entre o sofá e a torneira. Crise controlada, amansei o mulherio cheio de pratas na cabeça, não se preocupem, acontece-lhe isto desde muito novinho e não é nada, sim, já levei ao médico. A vários. Sim, já tentei isso. Sim, isso também, minha senhora, não adianta. 

Ela volta a sentar-se como se nada fosse, o meu filho volta a brincar com o filho de uma cliente com um bocado de papel higiénico enfiado numa narina. Tira os meus dedos de água, enxuga-os, olha as cutículas, põe-se a trabalhar. 

- Eu sei que não é nada porque tive o mesmo na gravidez. 

Oi? Gravidez?  Ela não parece ter mais de 17 anos. Mas tem, na verdade tem 20. Tem uma filha de 16 meses com dois L e um Y no nome, "porque tinha de ser diferente". Pergunto-lhe se a menina está na creche, ela diz que não, a menina vive com o pai. Fica séria, muito séria enquanto me tira as cutículas. Passam-se 30 segundos assim. Não tem sido fácil, pois não?, pergunto-lhe.

- Tive a minha filha aos 18 anos e não foi acidente nenhum, sempre quis ser mãe e estava apaixonada por aquele homem. Enquanto as minhas amigas queriam sair à noite, eu queria família, porque nunca tive. Na minha cabeça, ia tudo ser como nos filmes, nas novelas, mas não foi assim. O meu padrasto, quando descobriu a gravidez, pôs-me fora de casa, proibiu-me de ver os meus irmãos. Fui viver com o meu namorado a pensar que ia ser mais fácil, mas não foi. Ele não trabalhava, não trabalha até hoje. Batia-me, traí-me. Sofri muito, e era muito apaixonada. Ele era o amor da minha vida. 

Engoli em seco. Quis perguntar porque é que a menina estava a viver com ele, mas a resposta era clara, certo? Ela estava sozinha no mundo. E era, ela mesma, pouco mais do que uma criança.

- Batia-me, tratava-me mal. Mas eu confio no poder de Deus, sei que Deus tem um plano para mim. Já tenho uma queixa-crime contra ele e não lhe dou mais dinheiro nenhum. Sei que é uma questão de tempo até ter a minha filha. Parece uma bonequinha. Vi-a na semana passada, está cada vez mais linda. E vai ser minha. 

Claro que vai, disse-lhe. Todo este abandono e dor, tudo tão cedo, há de fazer sentido um dia - isto não disse, isto pensei. Mas ela não precisava de encorajamento meu, 

- E eu vou ser muito feliz, porque é a promessa de Deus, sabe? Vou ter a minha filha comigo e vamos ter um futuro bom. Haja saúde, haja trabalho, tenho as duas coisas. 

Sorri. 

- Quer um cor de rosa assim para o forte? Chegou um lindo hoje de manhã, coleção de Primavera.  

Quero, pois. 

- Vou buscar. Depois ponho o extra-brilho por cima. Vai ficar um espetáculo, parecido com unha de gel. 

Levanta-se, a cantarolar a canção brasileira que toca no fundo, exibindo uma barriguinha de cinco, seis meses de gravidez. 

Ali ao lado, o cabeleireiro dança com uma vassoura, fazendo um playback perfeito, sentindo as coisas todas que a letra da música vai dizendo. 

2 comentários:

Joanissima disse...

Delicioso.
Escreves cada vez mais bonito :)

Amor e Cenouras disse...

Conforme ia lendo o teu texto, ia-me faltando o ar, o peito apertando progressivamente...
Que dor. Meu Deus, como é que ela consegue?

Sim, já sei. Amanhã vai ser melhor.
bj