domingo, 17 de maio de 2015

Dando cabo da minha reputação em três, dois...

Acho que já disse isto há uns tempos: posso duvidar muitas vezes da existência de Deus, mas não tenho nenhuma dúvida da existência de anjos. Eu sei que existem, não sinto que existem; como sei que o meu filho tem olhos castanhos.

Uma pessoa que aborda outra do nada, como se lhe farejasse o desespero, e dá-lhe uma mensagem que só ela é capaz de entender no momento em que ela mais precisava. Vi isto hoje, diante dos meus olhos. Cheguei um pouco tarde e a minha observação foi óbvia: eram duas velhas amigas, uma a consolar outra num momento mau. Mas não; nunca se tinham visto mais gordas na vida, eram perfeitas desconhecidas.  Não havia explicação lógica para aquela comunicação perfeita e antiga. Não precisava de haver. Aquela pessoa materializada do nada trouxe alívio a quem precisava e eu fui testemunha. Tentei explicar porque chorava, mas não foi necessário, porque a pessoa entendeu. Um olhar dela bastou. "Não tentes racionalizar isto", dizia o olhar.

Como há dez anos me tinha acontecido exatamente a mesma coisa - mas a mim, a mensagem era para mim nessa altura -, assenti. Não há necessidade de explicar os recados que aparecem pelo caminho. Às vezes, basta aceitar o amparo que nos surge sabe lá Deus (lá está) de onde. Aceitar e agradecer.

Racionalizar, por vezes, é para fracos.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

O dom da escrita

Para escrever profissionalmente, o "dom da escrita" ou "o jeito para escrever" vem aí em sétimo ou oitavo lugar. Antes disso, vem o dom de trabalhar duro, em equipas por vezes boas, por vezes difíceis. Vem também o jeito para engolir sapos e negociar ideias, o ser convocado a más horas em maus períodos para dar o corpo ao manifesto. O dom da humildade. O dom de trabalhar bem, muito bem, até, no vazio. Mais facilmente se consegue ganhar a vida a escrever só com estes dons e jeitos que acabei de falar do que só com talento.

Talento sem trabalho é um nada. É abstração pura. Aliás, é pior do que nada, porque dá a sensação de alguma coisa.

sábado, 9 de maio de 2015

Eu

When Iefind the living a bore, there's a place I can go. I answer the call, go over the wall, where the crosses are all in a row.

Do excelente Beneath Thy Feet.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

UrbanSketchers no Thyssen

Gostava que o Gabriel desenhasse bem, por isso ando a incentivá-lo.
Normalmente ele faz os seus rabiscos em qualquer altura e em qualquer lugar o que me dá uma certa alegria. Aproveitando o interesse, na última viagem a Madrid, este fim-de-semana, dei-lhe um caderninho para que ele se distraísse a desenhar enquanto eu e a Melissa víamos o museu Tyssen. Tínhamos algum receio que ele se aborrecesse e nos fizesse a vida num inferno. Felizmente o Gabriel ficou sentado no chão a desenhar o quadro El Paraíso de Tontoretto de 1588, entretido e todo feliz. O comportamento trouxe uma onda de enternecimento pelos visitantes que não resistiam a sorrir ao ver o desenho e o esforço dele, o que me deixou bastante babado.
A tarde passada no Tyssen foi muito agradável. A Melissa apaixonou-se por um quadro de que nunca ouvi falar chamado Maria y Annunziata “del puerto” de 1923 pintado a óleo por Christian Schad.

Foi simpático e libertador ficarmos os 3 sentados no banco em frente ao quadro da Melissa, eu e o Gabriel a desenhar e a Melissa com as lágrimas nos olhos depois destes meses todos em que andámos cansados e desatentos uns aos outros.





quinta-feira, 7 de maio de 2015

Curtíssimas Madrid - I

“If a painting really works down in your heart, you don’t think, ‘oh, I love this picture because it’s universal.’ That’s not the reason anyone loves a piece of art. It’s a secret whisper from an alleyway, Psst, you. Hey kid. Yes you.”
Donna Tartt, The Goldfinch.

Em Paris não foi um quadro, foi uma escultura. Em Madrid, foram duas atrizes numa varanda que me fizeram sentar no banquinho a respirar fundo e a dar-me tempo de as conhecer. Uma confia mais do que a outra. Uma está mais cansada do que a outra. Uma é mais amada do que a outra. Uma protege a outra, que é mais ingénua. Uma já passou por mais coisas que a outra, ou talvez tenham passado por merdas igualmente ruins mas só uma ficou com cicatrizes. 

O Hugo volta de alguns corredores à frente com o Gabriel e eu ainda estou ali a topá-las, a elas, a que já cheguei emocionada pelo Hopper da mesma sala. O Hugo senta-se e eu tento disfarçar o choro, porque foda-se, já choro, choro por milhões de motivos que a Maria e a Annuciata me evocam. Ele não olha para mim, porque sabe que eu tenho vergonha desses acessos imbecis vindos do nada. 

- Queres que as desenhe?


Este é o original, não é a versão do Hugo. :)