sábado, 26 de julho de 2014

O verão e a aldeia, notas soltas

- Não é uma aldeia histórica, cheia de ruínas e camadas de civilizações diferentes, como seria de esperar vindo de nós, amantes de calhau que somos. É uma aldeia operária, fundada em virtude da mina, fileiras e fileiras de casinhas minúsculas brancas. À volta da aldeia, as ruínas da mina, formidáveis. Um cemitério abandonado no meio de nenhures com dez campas ao abandono. Um pequeno museu. E a praia. Mas primeiro, a mina, lugar mágico e um bocado assustador.

A água é ácida, vermelha. 






- No caminho para o corte, um terreno pequenino, murado, no meio do nada. O velho mais velho do mundo disse-nos: aquilo foram os ingleses da mina que fizeram para eles, é muito, muito velho. Tinha de lá ir, claro. Dez mortos esquecidos, provavelmente da altura em que o cemitério foi aberto (1860s, pouco depois da abertura da mina), com terra trazida de Inglaterra via mar.

Ninguém cuida do cemitério há dezenas de anos. Mas o cadeado é estranhamente novo.


- A praia foi, de longe, a melhor em que já estive em Portugal. Água sempre a 25/28 graus, chapéus de sol gratuitos, areal pequenino e limpo. Bar muito agradável, com preços decentes. Um anfiteatro e um parque infantil. Vinguei-me de décadas de rabo na areia por achar a água deste país demasiado fria seja onde for. Apanhei um escaldão. Fui feliz com brincadeiras parvas dentro de água. Pedalei uma gaivota. Enfim, foram férias balneares de altíssima qualidade. Mas voltemos à aldeia.

- A aldeia tem um multibanco. Um sítio onde se vende jornais. Uma micro-mercearia. Uma banca de mercado. É, portanto, um desafio. Vale tudo, menos stressar com a aldeia.

- Notícia maravilhosa da aldeia: as escolas primárias da zona estão todas em funcionamento, inclusive houve uma que reabriu. Para quem cruza o Alentejo pelas nacionais e vê aquela quantidade de escolas primárias lindas, aquelas fachadas imponentes e portões altos, fechadas a cadeados enferrujados, com baloiços e escorregas tristes lá dentro, é uma notícia no mínimo revigorante Os moradores perguntaram-nos: então o vosso menino vem para esta escola ou a de Corte de Pinto? Nenhuma delas, senhores, que pena. Mas iria, iria já hoje se a vida fosse outra, se fôssemos outros.

- O pôr do sol na Tapada Grande é de filme, pelo que passámos lá a maioria deles, sem saber que a vida explodia no centro da aldeia a partir das 22h, num cafezinho que serve o melhor chouriço assado que alguma vez vão provar. Criançada à solta na rua sem carros, Gabriel enlouquecido. Tantos amigos novos, sotaques diferentes. Francês, muito francês e espanhol, que em nada atrapalhavam a gandaia. Às 23h, uma hora atrasados, começou o espetáculo de variedades - a aparelhagem falhou-lhes e tiveram de ir mandar buscar outra sabe lá Deus onde.


- 3 eur para um adulto se sentar, 2 eur para as crianças, portanto, a maioria do público preferiu abancar no muro da igreja, mesmo. Mas a verdade é que aquela família formidável conseguiu, sim, ganhar um bom dinheiro naquela noite: rifas, sorteios, brincadeiras várias. Fiquei parva, pensava que iam sair de lá com os bilhetes dos Lyra e não, muito longe disso. Tenho muito que aprender. Hoje de manhã almoçavam todos numa mesinha improvisada, ao lado do palco. Uma família grande. Tendas.

Bilhetes que eram rifas de garrafas de espumante. Não ganhámos nenhuma.

- O meu filho ofereceu-se para o espetáculo de magia. Foram poucos os momentos em que o vi tão feliz, a arrancar gargalhadas da aldeia inteira (que arrancou!). E a verdade é o espetáculo me divertiu a sério. Como dizia a senhora ao meu lado: já vi este senhor várias vezes a fazer a mesma coisa, mas como não sei como faz, acho sempre muita graça.

- Hoje de manhã, a tapada estava cheia de gente - sendo que a casa que alugámos é mesmo em frente à praia.  De alguma maneira, parte daquela magia de casas brancas, silêncio de mina, show itinerante e café ao calor tinha acabado. Eu estava um bocado de coração partido, porque, depois de uma semana, só agora começava a entrar no ritmo da aldeia e a apreciá-lo por tudo que ele trazia de bom. Resolvemos antecipar a volta.

- A promessa é voltar lá no ano que vem. Cá para mim, ainda volto neste ano, em setembro. Somos bichos de cidade, eu e o Hugo. neuróticos e carentes de estímulo. Quando éramos mais novos, tínhamos essa experiência de desacelerar - ele ia com a família para a Fonte da Telha, eu ia para quintas e casas de interior do meu nordeste. É bom que ainda existam lugares com outra batida. É bom que o Gabriel possa senti-la, o meu bichinho de cidade, sem terra para onde voltar. Acho que adotámos aquela terra no meio do nada como nossa. Acho que já a amamos. Não foram umas férias normais. Foram umas férias com sabor a regresso a um sítio onde nunca estivemos mas por que, de alguma forma, ansiávamos.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

As fases da descoberta da avó Mel

A primeira foi gira, muito Marvel: tinha uma avó com asas, que voava, que se comunicava por telepatia durante o sonho, morava no céu e protegia-o de tudo e de todos. Nenhum amigo tem uma avó assim, portanto, ponto para ele.

Mas ultimamente anda ansioso. Quer falar com ela, quer saber onde está. Acha que não vem cá porque não quer, e não entende que não pode visitá-la. Não entende porque vamos ver a avó Lurdes e a Bel e não podemos ir ter com a avó Mel.

Ontem a coisa atingiu um novo patamar: enquanto víamos um documentário sobre o Tetris, jogo preferido da dona Melânia e que ela dominava como poucos, o Gabriel começou a perguntar sobre o que realmente aconteceu: se o corpo dela começou a estragar-se. Se doeu muito. Se não conseguiu ficar boa. Nunca lhe falei do que aconteceu à minha mãe, pelo que não entendo muito bem de onde veio isto.

Creio que chegou a altura de avó Mel ganhar contornos humanos, que ainda não teve. Ele pede isso, precisa disso, e por mais mal resolvida que eu seja com a morte da minha mãe, não lhe posso negar a avó. Disse-lhe que este fim de semana íamos ver fotografias. "Mas ela não é invisível?" É, filho, mas vamos ver fotos de antes de ela se tornar invisível. "Antes de morrer?" Sim, antes de morrer.


terça-feira, 15 de julho de 2014

O calcanhar de Aquiles da sombra

Não é porque dizemos a nós mesmos ISTO ACABA AGORA que isto acaba agora. Não é porque analisamos tudo ao mais ínfimo pormenor que a coisa se torna menos avassaladora. Não é por dizermos a nós mesmos que tudo que sentimos é uma estupidez que a coisa se torna menor. Distrair-me do que me incomoda também provou ser exercício fútil. Enumerar as coisas boas da vida também tem duração limitada contra a dita cuja.
Ainda não descobri o ponto fraco da sombra, mas lá chegarei.

Ou isso ou aceitar, finalmente, que a vida é cíclica e que Mercúrio fica retrógrado às vezes, que haverá, nos tais ciclos, coisas que me ultrapassam por completo, e que tudo isto é lindo, tudo isto é vida, tudo isto é património.

AnaMê, tens razão numa coisa que me disseste há não muito tempo: desconfiavas que eu falava pouco e falava tarde. Talvez o ponto fraco da sombra passe por pedir ajuda (ou perspectiva, é a mesma coisa) mais cedo e com menos peneiras. Talvez experimente isso. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

A segunda coisa que mais adoraria aprender na vida - sendo que a primeira seria a não controlar a ansiedade a comer - era não deixar que uma merda que acontece de manhã - merdinha de nada, caca, minicocó, caganita de mosca - me inundasse o dia inteiro de energia ruim, fazendo com faça más escolhas e arranje desculpas esfarrapadas que justifiquem um dia deprê na cama.

Adoraria aprender a relativizar e dar a volta por cima mais cedo, a remoer menos.
Porra, os dias de vida que eu haveria de ganhar com isso.

Por causa de merda, merdinha de nada, caca, minicocó, caganita de mosca. De problemas grandes e verdadeiros, saio eu bem.

Stopping by Woods on a Snowy Evening


BY ROBERT FROST
Whose woods these are I think I know.   
His house is in the village though;   
He will not see me stopping here   
To watch his woods fill up with snow.   

My little horse must think it queer   
To stop without a farmhouse near   
Between the woods and frozen lake   
The darkest evening of the year.   

He gives his harness bells a shake   
To ask if there is some mistake.   
The only other sound’s the sweep   
Of easy wind and downy flake.   

The woods are lovely, dark and deep,   
But I have promises to keep,   
And miles to go before I sleep,   
And miles to go before I sleep.

itálicos meus. 

segunda-feira, 7 de julho de 2014

A propósito das viagens pelo Amazonas

"O Segredo do Curumim" era uma das melhores histórias da luxuosa coleção Taba, única coisa da minha infância que guardei para o Gabriel.
E a canção desta história não podia ser mais linda. Ouço-a a lembrar do Trombetas, do Solimões, do Negro.

domingo, 6 de julho de 2014

Memórias de uma gravidez Parte II

... A gravidez não corria bem, e vivíamos isolados no cu de judas adentro. Era preciso fazer um exame sofisticadíssimo, uma ecografia. E, para tal, tínhamos de ir a Santarém, uma viagem de barco. Por algum motivo, fui com ela. E o meu irmão na barriga.

Ora bem, o Amazonas não é o Tejo, nem a viagem de barco no Amazonas é uma travessia para o Seixal. Para chegarmos a Santarém, levávamos uma noite e uma manhã de barco. As pessoas armavam redes no convés, iam a dormir a noite toda. Mamãe, por estar grávida, alugou um camarote. Não pensem também que é o camarote do HM Queen Elizabeth, estava mais para um comboio indiano, classe económica: era uma cabina do tamanho de uma casa de banho com duas beliches vendidas ao acaso. se abríssemos a porta, éramos devorados por insetos (não discorrerei sobre insetos da floresta tropical); se a fechássemos, o cubículo chegava facilmente aos 40 graus, mesmo à noite. Por isso, passávamos muito tempo simplesmente acordadas no convés, a ver a água preta, um breu de preta, a floresta preta, tudo preto e cheio de sons, de sombras se houvesse lua, tudo cheio de noite. O motor do barco. Peixes grandes, enormes, movimentos na água. O silêncio dela, da minha mãe. "Ameaça de aborto" foi uma expressão que aprendi na altura. "Em Santarém vamos comprar um conjuntinho para ti. E um maiô".

Ela morria de medo de perder o bebé. Morria de medo.

Continua...


Curtíssima sobre a solução para 99% dos meus problemas

Menos ego.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Que os anos passem mas não me levem isto

A emoção inexplicável e inexplicavelmente maternal que sinto quando vejo os atores em personagem pela primeira vez nos eventos de apresentação dos projetos. De estar ali a olhá-los como se os conhecesse profundamente (e conheço!) e eles não fazerem a menor ideia. Olhar para as criaturas com amor de criadora, porque sim, é amor. Eles não fazem ideia de quem eu ou qualquer uma das minhas colegas são, e não saberão, mas nós os sabemos de cor. Sabemos todos os seus segredos. Sabemos tudo que eles ainda não sabem.

"Ei, tu não fazes ideia, mas saíste da minha cabeça", pensei eu a olhar para a rapariguinha.

É muito bom, a sério.
É como conhecer um filho. Um tipo de filho.

Não quero nunca criar calo no sítio onde sinto isto.




Post com a imagem mais linda de sempre.

Para cada louca histérica como eu, devia haver uma Ana Casaca. Espero que haja. Eu, pelo menos, já não sei viver sem a minha.
Linda e amargurada. A minha vida é dura. 

terça-feira, 1 de julho de 2014