segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Nenhuma perda é só perda: em tudo há perdas e ganhos


Já comecei e deixei psicoterapia algumas dez vezes, e levo sempre uma frase de cada terapeuta (acreditem, já não é mau). E esta aí de cima foi a frase que trouxe da segunda terapeuta da minha vida. E a cada perda que sofro, vejo que ganho alguma coisa.

Tenho um zumbido no ouvido e plenitude aural há alguns meses, sem diagnóstico. Andam a revirar-me do avesso. Parece pouco, mas quem tem um som fantasma nos ouvidos 24 sobre 24 sabe que não é. E não vou falar sobre isso agora, porque só me faz concentrar-me mais ainda no zumbido.

O que importa para aqui é que desta vez os ganhos da perda nunca foram tão claros. Vi com uma clareza monumental a grande, enorme parva que tenho sido há anos. Vi como andei a negligenciar tantos milagres para só me concentrar na merda. Quanta energia perdida com o que eu não controlava. A única coisa que esteve sempre ao meu alcance foi a reação que eu deveria ter aos acontecimentos, e nada fiz sobre isso. Tanta energia do bem desperdiçada, energia criativa.

Sim, sim, vou chagafreitar-vos a partir de agora: quantos pássaros não ouvi, quanto matagal verde, quantas piadolas do Gabriel. Quanta endorfina ficou por ser libertada enquanto descargas de adrenalina faziam a festa neste corpo maltratado. E as flores de maracujá aqui ao pé de casa? Só dei por elas quando o zumbido apareceu. Hoje vinha pelo caminho até à escola a falar com o Gabriel e perguntei-lhe se ele achava que as flores ainda estavam lá. Ele disse que sim, claro. Eu achava que não. Chegámos a elas e lá estava uma heroína da resistência, tímida mas hirta. O Gabriel apontou-lhe num sorriso sem dentes de cima, boca aberta como as dos peixes cá de casa. Surpresa, mãe.

Quantas preciosidades dessas perdi a cada dia em que me concentrei na merda, única e exclusivamente na merda? Que diabo. Mudei.

Mudei. Hoje recebi um mail chato que não me chateou nadinha. É que nadinha, mesmo.

Este foi o ganho do zumbido. Cá para mim, foi para isso que ele veio. Estou numa fase de transição da minha vida a vários níveis, todos eles com dores e delícias. E vou sair desta fase melhor, mais forte, mais saudável, mais bonita. Sobretudo mais atenta.

Antes de tudo, mais atenta ao que interessa - e já vos disse, o que interessa é o Gabriel. Depois o Hugo. Depois tudo o resto, em variadíssimos graus, sendo que o topo da minha lista nos últimos anos foi lá para o meio/fim.

É mais uma peça do puzzle.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

De Gabriel

Uma pessoa fecha-se em si e dentro dos ouvidos (no meu caso) e às vezes, possuída, não dá o devido valor ao que realmente interessa. E o que interessa é o Gabriel.

Há uns dias estive a ler os primeiros posts deste blog, que começou no dia em que ouvi pela primeira vez o coração dele a bater. Toda a descoberta, o cair - e o levantar-se, vezes sem conta - na realidade, o bebé facílimo que ele foi mas que eu, cheia de expectativas hollywoodianas, não conseguia enxergar. Mas hoje não escrevo sobre o Culpossauro nem o Ouvidossauro (um muito recente primo), escrevo sobre o meu filho, que cresceu para se tornar a criança mais formidável do mundo.

Lembro-me de, aos seis anos, querer coisas, muitas coisas. O Gabriel quer muito pouco. Quer canja da avó Lurdes. Quer que o Vô Zé venha jantar com ele. Quer cócegas da Bel. Passa horas a ver jogos na Fnac e não me lembro de ter pedido seja o que for, nunca. O mundo dele é feito de carinho, de mimo, coisas que só muito mais tarde descobri não terem preço. Para o meu filho, uma canja da avó não tem preco hoje. E ele tem seis anos.

O Gabriel é sensível, sensível como eu, para mal dos nossos pecados. Como eu, gosta de agradar  gregos e troianos. Como eu, tem uma dificuldade terrível em defender-se e, como eu, está a aprender como pode. Como eu, tem uma letra pavorosa e desenha muito mal. Como eu, constrói mundos em poucos minutos. Como eu, conta histórias. As histórias preferidas do Gabriel são as que eu lhe vou desfiando à desgarrada, ele sempre o protagonista destemido ajudado pelos seus fieis escudeiros e damas indefesas da escola contra os vilões do mundo. Bate os olhos pesadamente, o sono a levar-lhe a melhor antes do fim da história, mas a sorrir -  afinal o Gabriel salva todos no fim, a cada vez. Sonha acordado como eu, embora em voz alta.

O xodó do Gabriel não sou eu, o xodó do Gabriel é o Hugo. Entendem-se na Playstation, território que co-habitam. O Hugo dos trabalhos de casa, é com ele que comemora as novas competências. O Hugo dos métodos novos de matemática. O Hugo do puff onde se aconchegam à noite a partilhar um travesseiro, eu sozinha, no meu sofá. O Hugo, que sabe do que ele fala a maior parte do tempo, super-heróis obscuros (para mim) e territórios da Terra Média. O Hugo que o veste na natação, com os seus segredinhos de balneário masculino. Sim, tenho ciúmes. Morro de ciúmes.

O Gabriel tem a melhor educação formal que o dinheiro pode comprar, que é a escola pública que escolhemos para ele, com aqueles colegas dele e aquela professora dele, aquelas auxiliares dele. O Gabriel vem connosco ao teatro, a concertos, a passeios que diz a todos serem enfadonhos, mas que farão parte do seu património assim como uns concertos de jazz pavorosos a que os meus pais me levavam fazem parte do meu. O Gabriel senta-se no chão em museus e desenha os seus desenhinhos maus, com o pai ao lado, enquanto eu leio tudo e googlo o que não encontro. O Gabriel faz perguntas, nós fazemos perguntas ao Gabriel. O Gabriel agarrou-me um dia pelo rosto e disse-me: mãe, espero que melhores - e saiu a correr. Faz-me chorar algumas vezes.

O Gabriel é filho único dos seus pais que só sabem ser pais dele, que não querem amar mais ninguém como o amam a ele. O Gabriel inventa irmãos imaginários com os quais não sabemos lidar. O Gabriel inventa bichos de estimação imaginários muitíssimo mais fáceis de lidar do que os irmãos imaginários. O Gabriel conta os sonhos de manhã antes de dizer bom dia. Gosta de correr nu pela casa desde que aprendeu a fazê-lo, seja verão ou inverno.

O Gabriel é tão mais do que tudo que sonhei para mim. É só doçura, só prazer de viver, só beleza. A ver se me lembro de dizer isso ao Hugo, junto com um agradecimento por tudo que somos. Amanhã cedo, antes de lhe dizer bom dia.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Ouvir

"O que é que não queres ouvir?", é uma pergunta que me tem surgido de várias maneiras, através de várias pessoas, nos últimos dois meses. Tenho tido imensos problemas nos ouvidos (que coincidiram com um grande evento na minha vida) que me deixaram completamente obcecada. Tenho uma perda moderada num deles e um incómodo persistente no outro, como se estivesse sempre dentro de um avião. Já fiz ressonâncias magnéticas inconclusivas. Já fiz tudo, sobretudo pensar nos ouvidos em vez de pensar no resto da vida.

 "O que é que não queres ouvir?", perguntam-me. E eu não sei. Não sei.

Todos os dias acendo velas para o meu anão. O meu anão era um anão de jardim da minha mãe, como já devo ter dito aqui várias vezes. Com cada vela, vem um pedido, seja para mim ou para outras pessoas. Com cada vela vem um toque no nariz do anão (sem julgamentos, ok? Não está fácil para ninguém.) e um pedido formulado ou não.

Hoje acendi a primeira vela do dia e olhei para o anão. E disse-lhe: eu amo-te, eu perdoo-te. Perdoas-me? Nada mais interessa. Segue o teu caminho. Vai com Deus. Não te peço mais nada.

Fui deixar o Gabriel na escola e fui beber café. Tinha cerca de 40 minutos entre o café e uma formação via skype já marcada. Nesses 40 minutos, consegui pôr no papel, em história, uma ideia que tenho cá dentro desde há anos. Sem hesitações, do princípio ao fim.

Desde junho que não escrevo nada, não consigo. Mal escrevo aqui.

Os ouvidos continuam entupidos, mas se este puzzle tiver três mil peças, já encontrei um dos cantos.