É a tradução do fenomenal "The Eternal Sunshine of the Spotless Mind" de Spike Jonze, no Brasil, cá toscamente traduzido por "O Despertar da Mente", que tanto dá para um filme sobre religião quanto sobre LSD. Na busca por um título mais acessível culturalmente, as distribuidoras às vezes falham em ver que o mais acessível está mesmo debaixo dos seus narizes.
Mas não é sobre tradução de títulos de filmes, este post. Este post é sobre apagar memórias.
Quem tem memórias fortes, das más, digo eu, daquelas mesmo más, costuma ser assaltado por elas quando abre os olhos à noite por um motivo ou por outro. Mais ou menos frequentemente, mas dou o meu dedo seu-vizinho, com aliança e tudo, a quem disser que tem uma lembrança horripilante que não o assole de vez em quando. E à noite, entre sonos.
Tenho umas duas ou três memórias horripilantes. Pouco tempo depois de acontecerem, costumavam visitar-me dentro do carro. Sempre dentro do carro, fazendo-me hiperventilar e ter de parar. Tinha de respirar fundo, telefonar a alguém, desviar o pensamento de qualquer forma. Era sempre no carro, e hoje penso que isso acontecia porque o carro é uma extensão de nós mesmos quando viajamos sozinhos. Isolados do resto da rua, sem qualquer máscara, estamos de guarda baixa. Com o tempo, desenvolvi mecanismos para substituir as memórias horripilantes por outra imagem qualquer, até que elas deixaram de aparecer dentro do carro. Aparecem agora nesses períodos de vigília na madrugada.
Quando uma memória horripilante aparece, faz-nos crer que tínhamos o poder de impedir que o momento horripilante acontecesse e não o fizemos. Não é como pôr um filme a rebobinar e a passar outra vez, sabendo exactamente o que vai acontecer. Com a guarda baixa, no meio da noite, ensonados, a memória horripilante aparece em aberto, apontando-nos o dedo, pondo o momento em pause e perguntando: E agora, como é que isto acaba? E pumba, acaba da mesma maneira, porque, aí está, é já uma memória, não mais um momento.
Isto para dizer que odeio quando dizem que os momentos maus fazem parte do que somos, do nosso aprendizado. Quem diz isso não tem memórias horripilantes. Não aprendo nada com elas. Não aprendi nada por ter vivido esses momentos, souberam apenas a castigo, sabem ainda, porque ainda voltam para me assombrar. Estaria bastante melhor sem essa bagagem. Seria uma pessoa muito mais feliz.
No dia que inventarem a máquina de tirar memórias, lá estarei eu na primeira fila.
3 comentários:
Por mais que doa a unica forma que temos de lidar com essas memórias é mesmo aceitá-las como parte de nós. Nada facil mas tem sido uma aprendizagem ao longo de anos.
De qualquer forma, quando inventarem a tal máquina avisa porque eu estarei logo a seguir na fila.
Costumo dizer o mesmo acerca do sofrimento. Há dores completamente estúpidas, desnecessárias e que não nos ensinam nada. Nada. Só nos retiram capacidades e por vezes até nos traumatizam. É verdade que há dores inerentes ao crescimento, à vida, com as quais se aprende, mas também há memórias de momentos muito mas dos quais nunca poderemos sorrir.
Máquina de apagar memórias, sem dúvida seria algo brilhante :)
Tenho a sorte, acho que é mesmo uma sorte, de esquecer com facilidade o que me doeu no passado. Não sei se esqueço, se bloqueio, não quero saber o processo. Mas a verdade é que vai-se, não dói. E não é por não ter sofrido, que já sofri alguma coisa. É mesmo porque serei uma afortunada.
Algo muito diferente, e que me assola sim como dizes, é o medo da perda. O medo da perda de duas ou três pessoas que tenho como pilares essenciais da minha existência até me faz transpirar em dias frios. Por isso, estou solidária contigo. Não pelas mesmas razões, mas por causa das sensações. Abracinho para ti.
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