quarta-feira, 30 de março de 2011

Sobre pessoas e sobre mim

Cada vez gosto mais de personagens redondas: gente cheia de pontos fracos, calcanhares de aquiles, defeitos pequenos e grandes e que tentam, todos os dias, ultrapassá-los - sem nunca os negar.

Adoro gente que se conhece bem e usa esse conhecimento em seu benefício. E adoro quem não tenta ser coerente o tempo todo. A coerência enche o saco.

Acho que passei muitos anos da minha vida buscando um grau de perfeição X para mim que hoje sei que não vou alcançar: sou demasiado analítica. Vou sempre encontrar mais defeitos. Vou sempre transformar características normais em defeitos. Se me deixarem, acabo por ler as minhas qualidades como defeitos.

É o plano para os 35: usar o gosto que tenho por personagens redondas em minha direcção, porque sou a personagem mais redonda e menos coerente que conheço.

Nada de piadinhas, ouviram?

quinta-feira, 24 de março de 2011

Curtinha sobre educação intuitiva

Quando o meu filho acorda aos berros no meio da noite (é raro), apavorado com qualquer coisa, vou lá buscá-lo e trago-o para a nossa cama, onde ele adormece colado a mim ou ao pai. Não tento acalmá-lo lá no sítio dele, porque foi coisa que nunca resultou comigo: quando tinha pesadelos, e tinha muitos, o coração acelerava, as imagens ruins chegavam e a coisa só melhorava com o calor dos meus pais.

Trazê-lo para junto de nós é o que sinto que está certo, embora os reis do achismo pediátrico digam que é errado (e não duvido, devem ter as suas razões).

Confesso que me sinto perdida em muita coisa ainda, em encontrar o equilíbrio entre o que nós esperamos dele e o que ele está, de facto, preparado para fazer. Nessas situações, tento mesmo ouvir os meus sentimentos. Criar um filho é - passo a redundância - um processo criativo. Há que haver método, sim, mas muita alma, muita imaginação, muita observação e troca de energia.

Nisto, a minha coerência é total: como em tudo o resto da minha vida, a educação do Gabriel é muito mais orgânica do que estruturada.

(Isto se já tiver, de facto, começado).

domingo, 20 de março de 2011

Dias santos

Diz um dos mandamentos que devemos consagrar domingos e dias santos ao Senhor. Mas e se acreditarmos que o Senhor vive dentro de nós ou é mesmo cada um de nós, passar um domingo ou um feriado a brincar com o filho, a rebolar na areia, a cozinhar coisas boas, a rir, a aproveitar o solinho e a maior lua cheia de sempre, a visitar amigos e a ser feliz... Não imagino melhor homenagem, nem mais alegre.

Deus deve gostar.

O mais terno dos hábitos portugueses

Para mim é o das mães da geração anterior à minha (nossas mães, portanto), nos encherem de comida e coisas para levarmos para casa de cada vez que fazemos uma visita: é batatas e azeite, fruta, comida feita, alguma coisa que tenham encontrado em promoção, bolachas, papel higiénico e o que mais encontrarem pelo caminho entre a despensa e a porta de saída.

Que maneira linda de continuar a cuidar das crias debandadas do ninho.

Eu, que já não tenho mãe e que tenho pai longe, adoro quando a Lurdes nos enche de saquinhos lá em casa. Da minha parte, tenho fazer o mesmo pelo meu irmão, mas ele é arredio. É arredio! Não leva nada daqui. Só come, o puto.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Babyblog mais uma vez

Se na escola me chamam "mãe" e cá em casa o Hugo raramente me chama pelo nome , como é que o Gabriel me chama "Isha" em vez de mãe?
É o pai e a Isha.

Acho ridiculamente brilhante.

domingo, 13 de março de 2011

Se um dia escrever um livro

Este vai andar por lá de certezinha.
Ando a relê-lo e, caramba, adoro aquele tipo de crescendo.
É de meninos grandes.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Cinzas

Sábado acordei e tinha o Noddy em casa. Até fiquei contente com a visita, mas se tivesse avisado com antecedência podia ter arrumado o lar para não parecer tão mal.

Ele explicou tudo:
- Pedi ao orelhas para, com a sua magia, me fizesse passar para o mundo real. Sempre quis saber como é viver numa realidade construída de cimento e onde os preços da gasolina sobem todos os dias.
O que foi chato foi o boneco reparar em tudo e fazer comentários quando se mostrava surpreendido. Mexia nas coisas, perguntava e ficava ali com o guizo a tilintar enquanto percorria as divisões da casa. Depois fartou-se:
- Vá, leva-me a conhecer a tua vida suburbana e faz-me ter histórias interessantes para contar a toda a gente lá no país dos brinquedos.
Levei-o ao Shopping e como não quis fazer figura de totó, fomos ver a colecção Berardo.
O meu fim-de-semana pareceu mesmo um filme de live-action animation.

E assim, pensando

... Cheguei à conclusão de que vim ao mundo a passeio.

Posso ser oversharer sobre a minha vida e tudo que me acontece, mas para me arrancar uma opinião seja sobre o que for - e aqui incluo mesmo tudo: amigos, política, filmes, educação dos filhos - que possa causar um mínimo de chinfrim, mas um mínimo absolutamente residual, ai, senhores. Não tenho tempo. Cada vez mais mantenho as coisas num nível muito superficial, de baixa manutenção.

Ainda bem.

(Longe de mim mentir: se me pedem expressamente uma opinião, eu dou; só não a defendo).

terça-feira, 8 de março de 2011

Feminina

Porque sim, porque é dia e a canção é linda e faz-me lembrar de tanta mulher linda que por mim passou e ficou, de uma maneira ou de outra.

- Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?
- Não é no cabelo, no dengo ou no olhar, é ser menina por todo lugar.
- Então me ilumina, me diz como é que termina?
- Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar.

Costura o fio da vida só pra poder cortar
Depois se larga no mundo pra nunca mais voltar

- Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?
- Não é no cabelo, no dengo ou no olhar, é ser menina por todo lugar.
- Então me ilumina, me diz como é que termina?
- Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar.

Prepara e bota na mesa com todo o paladar
Depois, acende outro fogo, deixa tudo queimar

- Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?
- Não é no cabelo, no dengo ou no olhar, é ser menina por todo lugar.
- Então me ilumina, me diz como é que termina?
- Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar.

E esse mistério estará sempre lá
Feminina menina no mesmo lugar

Da mesma autora de "Clareana",
que deu o nome a este blogue e continua a ser,
para mim, até hoje, a coisa mais bonita que já se escreveu sobre a gravidez.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Nirvana

Uma das personagens criadas por Herman José gostava de perguntar aos seus convidados onde estavam no 25 Abril. A pergunta tinha e, felizmente ainda tem, um sentido muito especial para a maioria dos portugueses. O momento, como se sabe, alterou a vida de todos e, recordar todas aquelas sensações, acaba sempre por ser um exercício aprazível com recurso a memórias que merecem ser partilhadas por todos os que participaram na revolução.
Para a malta da minha idade, que nem sabia falar em 74, a questão não faz muito sentido. Daí que se calhar, salvaguardando as devidas distâncias, o que mais se aproxima duma sensação de sentimento colectivo é talvez saber, onde estávamos no dia em que ouvimos pela primeira vez o Smels like a teen spirit dos Nirvana.

Corria o ano de 1991 e eu tinha chegado aos 18 anos o que me dava, pelo menos psicologicamente, uma certa liberdade. Podia agora ir ao Bingo, conduzir um carro, passear-me pelos casinos ou votar num partido e, embora não fosse um problema dada a minha incompetência com o sexo oposto, tinha também de ter algum cuidadinho com a idade de quem namorava porque nestas coisas a lei é cega, e já se sabe, podia ir mesmo de cana. Podem até parecer estúpidas as razões do meu contentamento, mas sentia-me o máximo em poder fazer isso tudo. Claro que constantemente me pediam o bilhete de identidade, ninguém acreditava que um petiz sem pêlo na venta tivesse chegado à idade que chegou, e o acto de mostrar a identificação cortava um bocado todo o triunfo do envelhecimento e dava um ar bastante amargo às minhas entradas nos sítios reservados aos adultos.

As noites de fim-de-semana eram passadas no mítico Johnny Guitar. Um clube decrépito em Santos gerido pela malta dos Xutos e dos Rádio Macau e onde se conseguia ouvir música pesada a noite toda. No entanto, a particularidade mais interessante é que a porta estava sempre aberta a quem quisesse entrar. Isso era um factor muito importante porque, normalmente, as saídas eram sempre em grupo e nunca havia raparigas na equação o que invalidava toda e qualquer tentativa de poder ingressar nas discotecas da moda. Ok, pronto, era uma tristeza, não se pode dizer que me pudesse orgulhar da minha vida social nocturna, mas independentemente de tudo, o Johnny Guitar acabou por se entranhar em mim e, a dada altura, já não o trocava por nada.

Podíamos ouvir tudo, desde Sisters of Mercy, até Red Hot Chily Peppers, passando por Metallica, Ramones, Iggy Pop, Ac/Dc, Guns and Roses, Led Zeppelin ou mesmo Smiths.
Os machos abanavam-se ao som das guitarras e das batidas fortes, lançando os cabelos longos para a frente e para trás e os mais audazes até conseguiam fumar no processo, o que não dava muito jeito mas que destilava bastante estilo, achávamos nós, para as 2 ou 3 miúdas que costumavam misteriosamente lá estar. Era, portanto, a melhor forma de cortejar os encantos e a alma feminina que, embora fossem um enigma, reinava aquela convicção parola que lá no fundo, a forma de sacudir o crânio teria a sua influência na hora de seleccionar os machos mais apetecíveis.

O ar estava sempre cheio de fumo, estávamos nos anos 90 e as discotecas eram um nevoeiro de cancro. Fumava-se muito e bebia-se também bastante, até porque o ingresso de 1000 paus dava para três cervejas ou 2 bebidas brancas. Eu estava na onda, emborcava vodka atrás de vodka, fumava cigarro atrás de cigarro e ficava para ali a abanar a carola ao som das músicas e, quando os solos de guitarra o justificavam, até puxava da minha guitarra imaginária e punha-me a solar como se fosse um Dave Mustaine, Jimmy Page ou um Slash. Era fixe a sensação de dominar um público imaginário com a destreza e a arte de dedilhar o ar.

E foi numa dessas noites que os acordes iniciais do Smells like a teen spirit exclamaram pela primeira vez das colunas e pintaram a escuridão do Johnny com uma loucura tão grande que ainda hoje sou incapaz de a descrever por palavras. A expressão dos nossos sentimentos era remetida para os saltos e gritos que partilhávamos, envoltos em suor, embebidos no hálito do álcool e no cheiro do fumo colado às T-Shirts negras com nomes de bandas. Saltar com aquela música era mais do que sexo, mais do que amor, era uma sensação de liberdade, raiva, frustração que se consumava no corpo através da dor resultante dum contacto físico mais ou menos violento duma pequena multidão em êxtase que se embrulhava em pontapés e puxões. Depois do final da canção ninguém conseguiu fazer mais nada além de ficar em silêncio, a tentar perceber o que realmente se passou. Acho que tínhamos mesmo atingido o Nirvana.

As músicas do trio de Seattle, especialmente do mítico Nevermind seguiam uma dinâmica de tom baixo/tom alto e a raiva que o Kurt Cobain expelia no refrão era duma sinceridade tão profunda que tinha tanto de comovente como de libertador e era essa veracidade impressa na sua voz e na sua figura melancólica que fazia com que toda a gente se sentisse tocada por ele.
Kurt Cobain acabou por se suicidar, como se sabe, e deixou literalmente o mundo a chorar com o choque. Os Nirvana foram talvez a última grande banda que tocou a tantos, de todas as idades, de todas as classes e de todas as ideologias.

Agora o mundo anda despido de valores e não é um sítio muito convidativo a ser feliz. Sente-se um cheiro a enxofre que se entranha nos poros e que acompanha os nossos passos como aquelas nuvens cinzentas dos desenhos animados. As pessoas andam mesmo perdidas e desesperadas. Por isso é que é ainda tão bom recordar músicas como Breed ou Stay Away. Ouvir Cobain gritar com aquela voz rouca provoca-me sempre um estado de libertação do sofrimento.
E é como se ainda estivesse no Johnny a pular…