Ao falar do acidente do meu irmão - que foi no ano da descoberta do cancro da minha mãe - a Carla disse: eh lá, já foi há sete anos! Parece que foi ontem. Senti-me mal com essa informação, fiquei muda sem saber o que sentir, apenas um buraco grande. Ontem, ao falar com a Anacê, consegui pôr o que senti em palavras: a minha mãe está cada vez mais longe.
E um cliché entre enlutados dizer que vão perdendo pormenores todos os dias, mas, como qualquer cliché, é putamente verdadeiro. Terrível, isto, quando estamos a falar da pessoa com quem dividíamos a vida (morávamos as duas, só), as roupas (vestíamos o mesmo número e tínhamos o mesmo gosto) e os segredos (éramos muito, muito solitárias, coisa que eu tratei de mudar.)
Claro que o tempo passou e agora sou mãe de família e a minha vida tem outro epicentro, mas naquela altura, a minha mãe era o meu casamento, e eu fiquei órfã, viúva, sem saber o que fazer da vida - não sabia ligar a máquina de lavar, sequer.
Não há outra forma de a trazer de volta se não assim.
A minha mãe, entre muitas outras coisas:
- Roía as unhas até ao talo. Só tinha uma faixinha de unha em cada dedo atarracado. Uma vez, conseguiu deixá-las crescer um bocadinho e foi logo arranjá-las, pintou de verniz Renda, da Risqué. Sentiu-se a bala que matou o Kennedy.
- Quando não queria que se entendesse o que estava a dizer, falava na língua do P fluentemente.
- Em 2003, ainda gravava cassetes da rádio. Ouvia sempre a Radar, mesmo quando ninguém a ouvia e era o rádio clube de Almada ou algo assim.
- Odiava Bossa Nova e toda a música que viesse de Minas Gerais, facto que eu herdei e não consigo explicar, é como um vestido feio com valor emocional do que não me possa desfazer (porque, pronto, saio do armário hoje, eu gosto de Bossa Nova.)
- Levava um borrifador do chinês para a praia com água doce. Assim, se o mar estivesse frio, borrifava-se. É brilhante. Grande, grande herança.
- Comia o mesmo pequeno-almoço todos os dias, todo o santo dia, há muitos anos: flocos de cereais fruta &fibra, iogurte de morango com pedaços misturados com uma dose inacreditável e insuportável de sacarina. Empurrava tudo com uma caneca enorme de café com uma dose inacreditável e insuportável de sacarina.
Por hoje, já é bom. Continuará.
8 comentários:
É bom que continue sim. Escrevermos é a melhor forma de tentarmos eternizar alguém. Adorei.
Quando te puseres a pensar, lembras-te de imensas coisas. Se calhar, muitas mais do que as conseguirias dizer de ti própria.
E escreve, sim, aqui ou noutro sítio qualquer. Arrependi-me mil vezes de não ter feito o mesmo com a minha avó e sei que me vou arrepender quando for com a minha mãe...
Tenho em cima do aparador da sala uma fotografia do meu avô. É uma foto particularmente bonita, porque estou eu, os meus irmãos, o Nuno, a minha prima (que é mais minha irmã mais nova) e a namorada do meu irmão. Estamos todos em redor do meu avô que é lindo...
E só quando olho para a fotografia é que me lembro que ele já morreu, porque na maior parte dos meus dias continuo a achar que ele está cá. Os detalhes podem ir escorregando, mas o que eles eram e representavam para n+os fica sempre cá dentro.
E é isso que importa.
Beijos!
;)
Nunca deixamos morrer as memórias e eu acredito que é por isso que as pessoas nunca chegam mesmo a morrer.
Emocionaste-me em demasia, sua estúpida. Mas obrigada.
A tua mãe deve estar mesmo muito orgulhosa de ti.
adorei!beijo
O problema é que são os pormenores que nos dão a dimensão da distância. São as merdinhas que vão desaparecendo. Que ela era uma pessoa dura, inteligente, intuitiva, bem humorada, forreta, que gostava mais de plantas do que de gente... Isso não se esquece.
Esqueço-me é dos dentes meio separados, dos óculos sujos, da orelha saída para fora, dos erros que dava ao escrever.
Curiosamente, do telemóvel dela não me esquecerei nunca. Agarro-me a isso. Vai-me doer terrivelmente no dia em que não me lembrar mais.
Tenho que fazer o mesmo para o meu pai e avó.
É uma viagem boa, Pekala. Dói um pouquinho, mas é bom.
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