A morte da minha mãe foi um evento fraturante na minha vida. "Ah", dizem vocês, "como não seria?". Sim, claro, como não seria, mas a verdade é que, pelo menos durante um bom tempo, perdi tudo que tinha, tudo que sabia. Não me preparei para a morte dela como outros familiares de doentes oncológicos se preparam, tive exatamente dois dias e meio para o fazer - cá em casa, enganámo-nos até ao fim, ela inclusive.
Tinha amigos e namorado, pai e irmão, mas ela era o meu norte. Perdi a noção de quem eu era, do meu propósito. Mas, seguindo os seus valores, segui em frente a sorrir para todos, está tudo bem, está tudo bem, está tudo bem, deem-me mas é trabalho que isso é o que importa, mais trabalho, por favor, mais trabalho.
Tão fraturada que estava que não fui capaz sequer de encarar a morte dela de frente, com medo de perder ainda mais qualquer coisa . E este medo de perda acabou por se tornar uma constante na minha vida: em face dela, retiro-me emocionalmente das situações. Qualquer situação, com qualquer pessoa. Fico fria, o cérebro entra em modo de sobrevivência - não voltarás a fraturar.
A Rita (a nossa Silvina) escreveu, num post que não encontro para linkar, que achava ridículo a distância que os médicos interpunham entre si próprios e os pacientes, com medo de "se envolverem", quando é este envolvimento que nos torna humanos. Não cheguei a falar com ela sobre isso, mas caramba, isto fez cair uma ficha das grandes cá dentro. Que não há que temer a perda, há que aproveitar o ganho. A presença, o presente, o afeto do momento que se tem em mãos. Não posso viver a vida a pensar no que me será tirado mais cedo ou mais tarde. Não é justo para ninguém. E a primeira vez que pensei que isso podia ser um disparate em vez de inteligência e coolness foi com ela. E a primeira vez que o exercitei, também. Permiti-me amá-la naturalmente, sem medos, naqueles últimos dias em que a tivemos e chorá-la condignamente quando tudo acabou.
Não posso dizer que perdi o medo de voltar a fraturar-me, mas acho que cada dia aproveito mais um bocadinho as delícias que o apego traz. Posso amar as coisas, posso perdê-las. Tudo bem, é a dinâmica de que a vida é feita. Perdas e ganhos. Lição bonita da moça bonita que nunca cheguei a agradecer. (Se me lês aí do sítio fixe onde estás, miúda gira, pega o meu abraço tão grato).
Não é uma aprendizagem linear, o apego. O meu pai chegou de Moçambique há uns dias depois de meses fora, e a primeira coisa que o meu cérebro sobrevivente pensou foi: não te habitues a isso, porque é temporário. Enfim, lá chegarei.
5 comentários:
Um beijinho.
Como te percebo.
Medos à parte, somos umas privilegiadas por ter conhecido tão grande mestre.
Beijinhos
Aproveita lá essas delícias devidamente, um abraço de pai de cada vez. <3
Presença de pai, colo de pai, mimo de pai e conversas de pai são sempre para tomar sem moderação, Mel. Eu tive o meu por cá um mês este verão e aproveitei sem pensar na partida. No próprio dia parecia que ia sufocar, porque nunca pensei nisso... mas que se lixe.
E a sensação maravilhosa de quando consegues finalmente largar a razão e seguires apenas o coração, ãh? Sem pensares no depois, nas consequências de expores assim o coração à vida. Expor o coração à vida, ainda que por breves momentos, é aquilo que nos faz sentir vivos de verdade. Sim, depois vem a merda e as feridas e tudo aquilo que marca para sempre, mas naquele breve momento foste capaz de sentir. Não percas isso :)
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