A mãe da mala azul chega à natação com os dois filhos. O mais velho vai equipar-se e o mais novo, da idade do meu, fica com ela na sala de espera. A dona Idalina pede-lhe o cartão do menino e a mãe da mala azul abre a mala azul e começa a tirar de lá papéis.
E papéis.
E mais papéis.
E lenços usados, e talões de multibanco, e pequenos desenhos e bocadinhos de faturas, que o filho mais novo vai pondo ao lixo um a um, e nada do cartão. A mãe da mala azul começa a suar e, às tantas, despeja a mala, e nada do cartão da natação no meio das 200 coisas que caíram ali pelo banco de madeira.
Ninguém que não tenha filhos leva tanta coisa na mala. É que até abro o desafio, o mala-challenge.
Na semana anterior, estivemos a conversar um bocadinho, eu, a mãe da mala azul e a mãe de outro menino que está em fim de tempo. A mãe em fim de tempo lá ia falando das expetativas de ter dois filhos, eu ia falando que se calhar íamos ficar por um filho só e a mãe da mala azul também começou a falar da sua experiência. E, quando começou, já não parou mais. Que nunca lhe tinham dito que ia ser tão difícil, que se ia sentir tão sozinha nos meses da licença, que a gestão das necessidades dos dois filhos fosse tão custosa, que fosse andar sempre tão, mas tão cansada, mesmo tendo a ajuda da sogra, que é um doce de pessoa. "Ninguém me avisou" foi algo repetido umas cinco vezes. A grávida perguntou-lhe, meio boquiaberta, se entretanto as coisas tinham melhorado, agora que o mais novo tinha quase três anos.
Não, disse a mãe da mala azul. Tá igual. Continuo cansada, continuo sem tempo, continuo um pouco suicida de vez em quando.
Nós três sorrimos, tristes.
A dona Idalina pôs a cruz de presença no nome do menino mesmo sem o cartão.
A maternidade não é um exercício simples e natural para a mãe da mala azul, como não foi para mim durante até muito recentemente. Foi muito difícil encaixar o Gabriel no meu dia, e tenho a plena noção de que não foi por ser uma pessoa muito ocupada - que não sou - mas por ser desorganizada por natureza, com pouco método, com uma mala já bem cheia de papelinhos bem antes de o Gabriel nascer e já dramática por natureza. E sempre cansada, também, porque os desorganizados e os dramáticos se cansam mais, muito mais. Durante a gravidez, tive a ilusão de que o Gabriel poria ordem na minha vida por um passe de mágica, porque seria impossível sobreviver no meio do caos com um bebé - seria uma espécie de milagre forçado - e a verdade é que é bem possível, sim. Mas é estupidamente cansativo e meio suicida de vez em quando.
Tive vontade de partilhar isso com a mãe da mala azul e dizer que comigo é igual, mas se calhar a história dela é outra bem diferente. Há sempre mil e uma maneiras de as coisas não correrem bem como estávamos à espera, e a desorganização e o pé no drama são as razões que eu encontrei para a quebra de expetativa que eu sofri. Tantas outras coisas podem ter acontecido na vida da mãe da mala azul. Se um dia voltarmos a conversar, se calhar pergunto-lhe.
Ela traz sempre um saco da Zara com livros lá dentro, e troca-os com a dona Idalina e outras mães. Há um autêntico book club ali na sala de espera dos Bombeiros. Era uma leitora voraz, a mãe da mala azul. Agora lê bem menos.
13 comentários:
Adorei este teu post.
Ja gosto da mãe da mala-azul e nem a conheço.
Senti/sinto tudo o que vcs sentem, o meu é da idade do teu e ainda sinto no corpo o quão dificil é ser mãe quando se trabalha.
Creio que se fizeres um inquérito, somos todas mães de mala azul (ou pelo menos a maioria).
Eu sou super-organizada, quase a ponto da obsessão e olha que ainda é mais difícil ter filhos quando se é assim. Porque eles desorganizam tudo, mudam tudo, alteram o nosso mundo. E, de repente, os nossos dogmas mudam. É muito complicado lidar com isso, aceitar essa mudança de paradigma nas nossas vidas.
Bjs
A mãe que lê o teu blog sorri, triste.
Adorei o post, Melissinha!
Vocês também têm malas azuis? :)
Gostei tanto deste post. Um beijo
eu tenho uma mochila preta da sportzone cheia de lenços ranhosos,talões do minipreço,brinquedos,livros e tupperwares e também sou uma mãe de mala azul.Concordo com a Sofia aí em cima,eu também era muito organizada e o que me custou mais foi prescindir disso,de repente era o caos.mas a organização volta,diferente mas volta e o tempo para ler também:)
Pois eu identifico-me tanto contigo Melissa... Eu tenho uma mala castanha, uma mochila da Kitty, uma filha de dois anos e meio e sofro de desorganização crónica. E também esperava o milagre do "alinhamento dos chacras" com a maternidade... Não aconteceu.
Adorei ler este texto. Eu, que como a mãe da mala azul, também era uma leitora bastante voraz.
Beijinhos***
Eu também sou a mãe da mala azul, só que eu choro, e acabei de chorar, e já cá vim ler isto umas 2 ou 3 vezes e chorei sempre.
Vou comprar uma mala azul.
:)
Adoro vir aqui e respirar normalidade. Também sei que todas nós somos capazes de escrever um texto igualmente bom e profundo sobre o lado bom dos nossos putos.
Mas admitirmos que as coisas não são fáceis, nem perfeitas e que todas temos o nosso saco azul, é o que nos faz sentir menos sós, menos raras.
Tudo isto é normal, meninas.
Quem não se sentiu um gigante saco azul, pelo menos uma mão cheia de vezes, é porque tem várias e constantes ajudas externas.
Adorei este post!
Tudo tão simples contigo, tudo tão linaer, tudo tão normal! Adoro!
Ah! sim, eu tenho uma mala azul, mto dramática, mto desorganizada onde há um pouco de tudo. Falta-lhe por vezes um pouco de mim!
Bjs
Mais uma saudável dose de realidade, tipo óleo de fígado de bacalhau (mas em saboroso).
Pronto, eu vou avisar toda a gente: ter dois filhos dá muito trabalho. (Mas vale a pena)
Nem quero imaginar 3, 4, 5...
Só o que me salva é que não tenho nada de dramática. Tenho uma bolsa marrom de couro arezzo de que nem gosto muito, comprada antes delas nascerem, já andou cheia de fraldas, os indispensáveis comprovantes de cartão de crédito, sempre, carregador de celular e outros fios, e sempre, mas sempre esqueço o boleto quando vou ao banco pagar uma conta, e igualmente documentos indispensáveis em compromissos que exigem documentos.
Eu não tinha essa esperança, mas creio que sim, a maternidade trouxe organização, um pouco. Só que, se não fossem gêmeas, acho que nem assim! É dura, muito dura a casca da preguiça e da bagunça mental e real.
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