Havia uma paranóia colectiva bem parva, diga-se, que consistia na estúpida tendência de ir ao Bingo jogar meia dúzia de cartões sempre que algum de nós fazia os 18 anos. Era tido como um ritual de passagem ao qual ninguém estava interessado em faltar. Ficávamos mesmo emocionados em mostrar o nosso Bilhete de Identidade à entrada enquanto esperávamos a autorização do porteiro que ficava a contar pelos dedos o deve e o haver do ano do nascimento.
Os Bingos eram espaços decadentes cheios de malta que não tinha nada para fazer e cuja vida entrara numa espiral de solidão e desespero tão profunda que acabara infelizmente ali, numa mesa redonda, a ouvir uma voz a debitar números enquanto se autodestruía com tabaco e álcool.
Claro que enquanto miúdos de 18 anos não nos apercebíamos do negrume daquele espaço, para nós tudo aquilo era novo e adulto. Podia-se beber e fumar até altas horas da noite sem que alguém recriminasse os nossos vícios e se as trevas do dia corressem de feição e fossemos abençoados pelo rodopio dos números e do destino, quem sabe até éramos capazes de sair de lá com algum dinheiro no bolso. Era o local ideal para o desabrochar da maturidade. Agora que tenho uma visão mais adulta da coisa e que os comportamentos do passado já não são mais do que recordações passíveis de serem gozadas e até de poderem ser interpretadas como génese da minha personalidade, confesso que o que mais nos atraía nem era tanto o Bingo em si, mas a possibilidade de poder um dia entrar naquele antro sem que o segurança nos pedisse o Bilhete de Identidade. E acredite-se que fazíamos sempre os possíveis para não passarmos pelo embaraço de sacar a carteira Dunas e enfiar com desdém o cartão do arquivo de identificação de Lisboa pelas ventas do porteiro. Libertávamos o crescimento da barba, vestíamos uma ropita mais formal e deixávamos as borbulhas de molho em Clearasil durante a semana para o efeito do creme poder esconder convenientemente as mazelas da puberdade.
O Bingo era, claro está, completamente devoluto em matéria de mulheres da nossa idade. Havia algumas senhoras bastante mais velhas que, à falta de homem e esperança de poderem encontrar novamente o amor, matavam a escassez do afecto nos riscos e nos gemidos de Bingo e Linha que, por vezes, pronunciavam com o vigor animal que as deixava, parecia-me a mim, francamente excitadas. Sorriam, pagavam cartões e deliciavam a mente com as piadinhas de quem tivera o sopro dos deuses.
Havia uma senhora, Perpétua, que sentia alguma pena de nós e dizia quando estávamos na sua mesa que éramos jovens de mais para ali estarmos e o que devíamos fazer era gastar o nosso tempo a convidar as raparigas para os bailes. Depois ficava calada, concentrada nos seus números e deixava a conversa para trás. Abanava a cabeça quando as suas bolas numeradas não saíam e, quando desesperada pelo abandono da sorte, lançava a caneta para a mesa desistindo de conferir o resto da extracção.
Eu até gostava de gastar o meu tempo a dançar com raparigas, achava eu, mas nunca tivera convidado nenhuma para esse efeito. O medo do julgamento que ela pudesse fazer sobre a minha pessoa, de ar franzino e dentuça sobressaída, era razão suficientes para não me aventurar em marés tão desconhecidas. Seja como for a falta de calor feminino levava-me, durante a solidão da noite, a ter as minhas conversas com Deus e a pedir-lhe uma ajudinha nessa matéria. Os meus planos, para caso da ajuda divina viesse um dia, era levar a cachopa até ao cinema, víamos o Querida, ampliei o miúdo e tomávamos um café depois da sessão. E para a que noite fosse perfeita, convidava-a para irmos ao Bingo jogar um cartão ou dois. Coisa pouca, só para ela sentir aquilo. Se Deus me ajudasse mesmo, quem sabe, até podia fazer com que nos saísse seis ou sete contos de prémio e que a adrenalina da vitória a impulsionasse a beijar-me. Durante muitos meses era esse o máximo de romantismo que o meu barómetro do amor atingia.
Deus ouviu-me e deu-me um sinal que qualquer dia tratava disso, que depois dizia qualquer coisa. Sei que era um sinal porque olhei para o relógio às 22:22.
…até hoje.
3 comentários:
Genial!
:) Vamos ao bingo!
:) O que tu te foste lembrar, Ravanelli.
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