Leitura é telepatia, disse Stephen King no maravilhoso e divino On Writing. O escritor manda uma cadeira de lá, nós recebemos a cadeira cá: ele dá uma parte do caminho, nós damos a outra. E temos cadeira. A magia acontece.
Há uns dias, uma amiga disse-me no Facebook qualquer coisa sobre A Sombra do Vento e eu disse-lhe que ainda ia na página 67 (e tinha começado a ler três ou quatro dias antes, sou uma leitora lenta). Ela respondeu-me: então ele ainda não te hipnotizou. Pensei: hum, há muito tempo que as interferências do dia a dia não deixam que livro nenhum me hipnotize. Posso gostar muito, posso até lê-lo avidamente num dia que tenha livre, mas hipnotizar, não. A última vez que um livro me tinha hipnotizado tinha sido na adolescência.
Ontem, por volta das 22h, o Sr. Zafón entrou em telepatia comigo. Ia na página 150, 180 de um excelente livro e estava rendida a tudo: estilo, tema, personagens, cidade. Que livro do caneco. E continuei a ler. A magia acontecia.
Por volta da 01h, creio eu, completou-se a hipnose. Eu já não era eu, eu era um canal aberto para aquela história meio gótica, cheia de ecos e matrioskas e personagens incrivelmente gentis. Já não julgava, já não formulava. Simplesmente deixava-a entrar.
Às 02h24 (olhei para o relógio) tinha um leve soninho e fui à casa de banho. Voltei e pensei que o feitiço se tinha quebrado, até o autor me arrebatar com uma frase enlouquecedora e me puxar para um estado de total alerta mais uma vez. E segui em frente. Sentia umas coisas na barriga que devia ser fome, mas até isso (fome!!! Fome a sério!!!) não tinha importância nenhuma. Importante era o canal aberto. Importante era saber mais.
Não terminei o livro, deixei cerca de 40 páginas para hoje. Acabei por o fechar numa luta de mim contra o transe, em que ganhou o bom senso. Às oito, como todos os dias, estava de pé. Não sei quanto dormi. Mas não sou tipa de insónias, preciso do meu descanso e hoje estou como se tivesse sido passada por um rolo compressor depois de beber um litro de vodca.
Mas ninguém me tira o que vivi de madrugada, eu e eu somente, e que sei lá quando vou voltar a viver. O contrário de habitar o presente, ou a sua própria definição. Um prazer absoluto na ausência ou na presença.
Passei o dia podre, mas muito, muito feliz.
7 comentários:
Já tinha saudades destes teus posts.
(e é mesmo para isso que servem os livros, certo?)
"Destes"? Tenho de ver os últimos :)
Posto desta forma... terei que zafonetizar-me...
há muito que não há um livro que me deixa assim nas nuvens!
Com os Malaquias senti um pouco isso.
Aconteceu-me isso com Záfon e acontece-me, quase sempre com Murakami.
Não gosto nadinha de gelado, por isso só comentaria aqui.
Mas não me lembro de quando um livro mexeu assim comigo, há anos que não, nada. Lembro-me de noites em branco sem conseguir parar de ler mas já foi há muito, muitooooo tempo. Talvez na altura em que ainda gostava de gelados.
Realmente a minha capacidade mental já só dá para filmes. Porque os filmes posso gravar e guardar para quando estou a passar a ferro. Vejo 2 ou 3 de seguida e está o serão feito(e a roupa passada). Onde é que consigo fazer isso com um livro? Não dá!
Vera, comigo tinha sido desde aí os 17 anos. Acho que foi as Brumas de Avalon, vê lá tu :)
Por isso, foi um presente autêntico.
Gostei muito dos zafóns:-)
Enviar um comentário