"... Claro que o Vítor começa com a cantilena, os soldados foram obrigados, não havia nenhum que quisesse ir para lá, blá blá blá. Se o Vítor tivesse ouvido as histórias da mãe, quando o vosso pai acabou a segunda classe já tinha as estradas à espera, o vosso pai dizia-me, se se soubesse o suor com que as estradas são feitas ninguém as pisava antes de se benzer, a mãe do vosso pai teve nove filhos, nove bocas para comer e dezoito braços para trabalhar, só se deitava contas aos braços, que às bocas podia roubar-se quase tudo, umas rodelas de cebola numa côdea de pão calavam os roncos das barrigas. Se o Vítor tivesse ouvido a mãe saberia que nada nem ninguém obriga mais do que a fome e que o pai embarcou no Pátria mais obrigado do que qualquer soldado".
"A minha irmã tem vergonha de ser retornada, finge que é de cá e esconde o cartão que tem o carimbo vermelho, aluna retornada, o cartão que dá direito a um lanche na cantina. A minha irmã cheia de fome mas sem coragem de ir à cantina para que os de cá não vejam o cartão, aluna retornada. A minha irmã a achar que pode não ser retornada apesar das roupas grandes, da pele ainda queimada pelo sol de lá, de se rir sem medo que os lábios sangrem, um sorriso bonito, a dizer pequeno-almoço, frigorífico, autocarro, furos, em vez de matabicho, geleira, machimbombo, borlas, a minha irmã a não querer ser retornada e quando acorda, hoje sonhei que estava a comer pitangas, a minha irmã tão triste que já nem me chama estúpido".
De "O Retorno", Dulce Maria Cardoso
2 comentários:
Eh pá, nunca tive esse cartão! Onde é que eu reclamo?
E as chuíngas? Tem chuíngas? (sotaque de preto) O quê? Ah, pastilhas elásticas! És retornada?
(Nunca tive vergonha, achava toda a gente estúpida e tinha muita raiva!)
Ias curtir o livro, Ginguba, é o que digo ;)
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